domingo, 8 de maio de 2011

Tutela jurisdicional dos litígios inter-orgânicos nas pessoas colectivas públicas

Sem prejuízo da já existente legitimidade para a apreciação de litígios intersubjectivos (entre várias pessoas colectivas públicas), os tribunais administrativos possuem legitimidade para a apreciação de litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública (por exemplo, entre o órgão de administração e o órgão de fiscalização de uma associação pública).

Como refere o Prof. Vasco Pereira da Silva, a inclusão das relações jurídicas inter-orgânicas nos arts. 10º, nº6 e 55º, nº1 d) do Código de nos Tribunais Administrativos e Tributários (doravante, CPTA) permite superar o “dogma da impermeabilidade das pessoas colectivas públicas”; esta teoria centra-se na concepção da indivisibilidade entre a pessoa colectiva e os seus órgãos, não reconhecendo a estes uma esfera jurídica autónoma; sem esta autonomização seria impossível conceber a possibilidade de existirem litígios entre órgãos da mesma pessoa colectiva pública (equivaleria, como menciona Pedro Gonçalves, in “Cadernos de justiça administrativa” nº35, a um processo da pessoa colectiva contra ela própria).

Esta concepção foi substituída por uma visão pluralista das pessoas colectivas públicas, mesmo a nível inter-orgânico, admitindo-se, por isso, a existência de interesses diversos e de uma “esfera de acção própria dos órgãos pertencentes à pessoa colectiva publica.

Considerando o exposto, não é de estranhar que o paradigma dos referidos litígios seja constituído pelas situações de ingerência de um órgão na esfera de acção autónoma de outro órgão, litígio esse que agora pode ser resolvido pela via contenciosa, recorrendo, portanto, aos tribunais administrativos.

É ainda de salientar que esta sujeição à apreciação dos tribunais administrativos consubstancia uma excepção à concepção tradicional de que o Direito Público e, em especial, o Direito Administrativo se limita a regular as relações entre o Estado e os cidadãos; neste caso, estamos perante as denominadas “relações jurídicas administrativas internas”; estas relações jurídicas dizem respeito às relações que se estabelecem dentro da própria pessoa colectiva, distinguindo-se das relações dessas pessoas colectivas com terceiros (relações jurídicas administrativas externas) em que os órgãos actuam em nome da pessoa colectiva, sendo que estas actuações vão ser imputadas na esfera jurídica das pessoas colectivas. Este facto relaciona-se em grande medida como principio da especialidade: os órgãos das pessoas colectivas só têm competência conferida por lei para a prossecução dos fins ou atribuições das pessoas colectivas em que se integram (não têm capacidade jurídica genérica).

Contudo, este facto não obsta ao princípio da justiciabilidade dos litígios já que a pluralidade de interesses representados por cada órgão e a consideração das relações que se estabelecem entre eles como verdadeiras relações jurídicas são suficientes para a justificação deste princípio.

Coloca-se a questão de saber quais os litígios que se podem subsumir à previsão do art.10º, nº6 e do art.55º, nº1 d) do CPTA.

O primeiro preceito citado atribui legitimidade ao órgão cujo comportamento lesivo originou o litígio; a legitimidade activa para a proposição da acção administrativa encontra-se consagrada no art.55º, nº1, al. d); seguindo uma posição restritiva, considerar-se-ia que apenas os actos jurídicos individuais e concretos poderão dar origem ao litígio; ao invés, se se optar por uma concepção mais ampla – como explicita Pedro Gonçalves podem também incluir-se neste conceito a omissão ou recusa de um acto devido e os actos materiais. Esta posição parece ser sustentada pelo art.4º, nº1 j) do Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (adiante, ETAF) que não distingue quais os tipos de acto que têm de estar na base do litígio. Assim, todos os litígios que tenham por objecto relações jurídicas entre órgãos de pessoas colectivas publicas.

Os litígios inter-orgânicos podem revestir duas modalidades:

1. Litígios que ocorrem no contexto da relação entre os órgãos (aquele que pratica actos dirigidos a outro órgão) ou litígios provocados por um acto praticado por um órgão e dirigido a terceiro, sendo exemplo desta modalidade os casos de conflito positivo de competências (dois órgãos consideram-se competentes para a pratica do mesmo acto dirigido a terceiro; aqui, a propositura da acção justifica-se pelo facto dos titulares do órgão possuírem um direito subjectivo ao exercício das suas competências – questão desenvolvida infra).

2. Os litígios que ocorrem dentro do próprio órgão da pessoa colectiva publica: estes litígios têm necessariamente lugar no seio de um órgão colegial (relações entre o próprio órgão e alguns dos membros ou entre o presidente do órgão e os outros sujeitos que o integram). A estes casos não são aplicáveis as disposições relativas â legitimidade.

Não obstante o já referido princípio da especialidade (donde resulta a actuação dos órgãos enquanto unidades de actuação da pessoa colectiva), deve-se reconhecer aos órgãos enquanto sujeitos de relações jurídicas (sendo por isso titulares de direitos e estando adstritos a obrigações) no plano interno das pessoas colectivas públicas; em sentido contrário, o Prof. Jorge Miranda não reconhece aos órgãos a titularidade de direitos subjectivos ao exercício das suas competências.

Este direito tem como conteúdo a possibilidade do órgão exercer as suas competências (que por lei lhe estão afectas) sem impedimentos ou perturbações de outros órgãos: estamos perante o direito de um órgão perante outro órgão (relações exclusivamente internas)

Os pressupostos para se poder admitir o referido direito subjectivo são os seguintes: tem de se tratar de um órgão autónomo (não pode estar integrado numa cadeia hierárquica) e este tem de representar um interesse específico.

Em face do exposto conclui-se que, apesar da redacção pouco clara do art.55º, nº1, al. d), que os órgãos só podem agir judicialmente quando as suas competências são simultaneamente direitos ao seu exercício ; esta possibilidade decorre igualmente do art.4 nº1 j) do ETAFF (a expressão “no âmbito dos interesses que lhes cumpre prosseguir “ é entendida como uma exigência de que os órgãos têm de ser titulares de um interesse especifico no exercício das suas competências).

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