domingo, 1 de maio de 2011

Sistema Judiciário vs. Sistema Executivo

No prisma dos sistemas de Direito Administrativo, logramos observar uma grande especulação teórica à volta da distinção entre dois sistemas, nomeadamente, o sistema judiciário também designado por sistema Anglo-Saxónico, e o sistema executivo ou de tipo francês, sendo ambos assim designados pelo Prof. Freitas do Amaral.
Essencialmente, aquilo que os distingue é o modo como a actuação da Administração é fiscalizada, estando no primeiro caso sujeita à jurisdição dos tribunais comuns, e no segundo, sujeita à fiscalização dos Tribunais Administrativos, especificamente criados para esse mesmo efeito.
No entanto, aquilo que separa estes dois sistemas são conceitos mais díspares que se nos revelam uma vez colocado o sistema no divã do psicanalista, como diria o Prof. Vasco Pereira da Silva.
Sendo assim, é de salutar duas diferenças fundamentais, designadamente, a diversa interpretação que cada sistema faz do Princípio da Separação de Poderes; e o conceito de Estado presente em cada um destes ordenamentos, não obstante o facto de no caso inglês o conceito primar mais pela ausência.
Relativamente à Separação de Poderes, citando o Prof. Freitas do Amaral, poderíamos afirmar que é das divergências existentes em relação à sua interpretação que resultam “duas espécies do mesmo género” de sistema administrativo. Em França, após a revolução de 1789, que teoricamente derrubou o Ancien Regime e com ele todo o despotismo e arbítrio que o caracterizava, procurando a todo o custo impor a ideologia liberal que preconizava, levou o Princípio da Separação de Poderes ao extremo de deturpar o seu significado. A preocupação de fazer valer a Separação de Poderes até às últimas consequências, traduziu-se na perspectiva de que a Administração não poderia estar sujeita à jurisdição dos tribunais judiciais, pois: “Julgar a Administração é ainda administrar”, era esta a perspectiva de alguns magistrados da época liberal, tais como Thouret ou Richard de Nimes.
A citada interpretação do Princípio da Separação de Poderes, que posteriormente vai ter implicações na organização administrativa de tipo francês, tem origem antes do Antigo Regime, já que durante a sua vigência, a promiscuidade entre o poder executivo e o poder judicial tinha deixado as suas marcas, tentando agora proceder-se a uma solução de ruptura com o passado, ainda que sem resultado, pois levou a uma situação de continuidade da salvaguarda da Separação de Poderes levada ao extremo. Tal justifica-se, uma vez que, apesar da necessidade de mudança e de ruptura, a solução adoptada passou pela criação dos Tribunais Administrativos, como órgãos da Administração que tinham como função fiscalizar a sua actuação e julgá-la. A solução preconizada acabou por agravar o problema, acabando por gerar novas soluções repletas de injustiça e desigualdade.
Esta situação, embora evolua significativamente na óptica de aperfeiçoar o sistema em sentido favorável aos particulares, com a fase da judicialização, que determina a separação entre Tribunais Administrativos e Administração, não podemos ignorar que a interpretação algo extremista da Separação de Poderes vai influenciar e fixar uma cisão relativamente aos sistemas de origem Anglo-Saxónica.
No que concerne à diferente concepção de Estado nestes dois ordenamentos, ao sistema francês ou continental (assim designado porque o modelo francês se estendeu a muitos países da Europa continental) está subjacente a ideia de um Estado unificador, relativamente ao qual é necessário “proteger” ou “facilitar” a respectiva actuação em prol do interesse público, devendo ter um estatuto especial face aos particulares; já no sistema Anglo-Saxónico não verificamos qualquer ideia semelhante na sua base, quanto muito podemos encontrar algumas similitudes com o conceito de Coroa. Desde muito cedo que “a Coroa” está submetida ao poder jurisdicional dos tribunais comuns e vinculada ao cumprimento das suas funções, tendo como limite o respeito pelos direitos dos particulares. Este sistema é influenciado historicamente pela Magna Carta (1215), bem como pelo Bill of Rights (1689), não obstante outros pontos importantes que foram submetendo o Rei e a Administração à jurisdição comum, sendo-lhe aplicável a “common law of the land”.
Posteriormente, no século XX, alguns autores britânicos, destacando-se Dicey criticaram o sistema francês em contraposição ao britânico, argumentando que aquele não tutelaria de forma eficaz o direito dos particulares face à Administração.
Decerto não estavam patentes, no sistema Anglo-Saxónico, alguns dos aspectos que permitiam caracterizar a Administração de tipo continental como “autoritária”. No sistema supracitado, a Administração Pública não gozava do benefício de execução prévia das suas decisões por autoridade própria, tal como no sistema francês, devendo as suas decisões ser mandadas executar por uma sentença de tribunal comum. Assim, os particulares que vissem os seus direitos violados por uma actuação da Administração, poderiam recorrer, no sistema Anglo-Saxónico, a um tribunal superior (King’s Bench), solicitando um mandato ou um direito, para que a Administração praticasse ou se abstivesse de praticar certo acto lesivo dos seus direitos. Ao invés no sistema continental, o particular teria de fazer valer os seus direitos num tribunal administrativo, sem independência relativamente à Administração, o que, na opinião do autor punha em causa o Princípio do Estado de Direito, pois a Administração seria tratada de forma especial face ao particular.
Maurice Haurriou tenta responder à tese do autor britânico, defendendo que para invocar a inexistência de um Estado de Direito, é preciso observar todo o ordenamento, para além de que, apesar do seu início sinuoso, os tribunais administrativos tinham já evoluído a um nível capaz de defender os direitos dos particulares.
Posto isto, questiona-se: deverá proceder a crítica de Dicey e defender-se que o sistema de tipo francês é pouco eficaz na defesa dos direitos dos particulares face à Administração, sendo tendencioso ou parcial? Nos dias de hoje serão ambos totalmente opostos ou caminham para uma certa convergência?
Quanto à primeira questão estamos certos que a tese de Dicey não será de acolher, já no que respeita à segunda apostamos numa resposta afirmativa.
Em suma, ao longo do século XX as diferenças patentes na tutela dos direitos dos particulares esbatem-se, com a criação em Inglaterra de alguns “Administrative Tribunals”, que mesmo não sendo tribunais no sentido de tribunais administrativos existentes no nosso ordenamento, são órgãos administrativos que decidem ou devem decidir questões de direito administrativo, cabendo recurso destas para os tribunais comuns. Bem como, na transição do Estado Liberal para o Estado Social, através do aparecimento de bastantes leis administrativas.
Por contrapartida a este movimento “Administrativizador” vivido em Inglaterra, em França e em outros sistemas de matriz francesa presenciávamos a “fuga para o direito privado” de muitas áreas que classicamente haviam estado sempre sob o domínio administrativo, tal como a diminuição do protagonismo da Administração autoritária, através da estipulação de mecanismos de tutela dos administrados como a suspensão da execução de decisões administrativas até pronúncia do tribunal sobre a sua legalidade.
Para concluir, julga-se que no futuro se verificará uma maior convergência entre estes dois sistemas, já que através da notável aproximação com a jurisdicionalização do sistema executivo, maior será a proximidade com as preocupações de harmonia comunitária que regem a fase de europeização do Direito Administrativo.

Ana Filipa Magalhães, sub.5
Nº 16463

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