domingo, 22 de maio de 2011

Poderes de Pronúncia do Juiz na Acção de Condenação

Poderes de Pronúncia do Juiz na Acção de Condenação à Prática do Acto Devido – artigo 71º CPTA

A consagração da acção de condenação da Administração à prática do acto devido, na medida em que atribui ao juiz poderes de injunção para impor à Administração a constituição de situações jurídicas, suscita especiais problemas ao nível da articulação entre dois grupos de princípios constitucionais: por um lado, o princípio da separação de poderes (artigo 114º CRP) que impõe que a cada poder estadual caiba um domínio funcional ou de competências reservada e, por outro, o princípio da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva (artigos 20º e 268º/4 CRP) que aconselham a um aprofundamento do controlo exercido pelos tribunais na tutela das posições jurídicas dos particulares.

É preciso ter presente, que a partir do início do século XX, o princípio da separação de poderes deixou de ser entendido numa óptica simplista e mecanicista segundo a qual este impõe uma completa separação, antes assumiu a dimensão de princípio de equilíbrio, potenciando uma interdependência e colaboração entre as várias funções estaduais. Circunstância que não é incompatível com o reconhecimento à administração de um espaço de decisão autónoma que não pode ser objecto de heterodeterminação pelos demais poderes, «maxime» o judicial.

Como ensina Sérvulo Correia, «o ponto de intersecção entre separação de poderes e justiça administrativa não reside, consequentemente, na forma jurídica, mas antes no conteúdo material da injunção. O que há que determinar é o plano a partir do qual a injunção deixa de relevar da função jurisdicional. Num sistema em que o papel do juiz administrativo é o de velar pela conformidade das condutas e das situações da administração com os parâmetros jurídicos (…) o que conta é na realidade, o binómio clássico entre questões de direito e questões de oportunidade, entre dizer o direito e apreciar a oportunidade. O problema do poder de injunção não é senão uma das facetas da questão da extensão do controlo jurisdicional».

Em rigor, os tribunais apenas podem aferir da compatibilidade das decisões administrativas com a constituição, lei e princípios gerais de direito, ficando excluída a possibilidade de conhecer de questões de mérito, ou seja, questões que comportem a valoração da oportunidade e conveniência da actividade administrativa.
De facto, este entendimento é imposto pela própria inadequação funcional dos tribunais para o exercício das competências materialmente administrativas. Com efeito, a administração está dotada de meios especialmente idóneos para a prossecução do interesse público, concretizados ao nível da amplitude de informações, de conhecimentos técnico-periciais e de uma complexa estrutura organizativa de que dispõe. Acresce a circunstância de a administração radicar na legitimidade democrática e ser politicamente responsável.

Assim, o ponto de partida para o estabelecimento e análise dos poderes de pronúncia do juiz na acção de condenação à prática do acto devido baseia-se na necessidade de assegurar que o poder judicial não se possa imiscuir no referido espaço de autodeterminação da administração. Está, desde logo, em causa a observância do princípio do contencioso administrativo plasmado no artigo 3º do CPTA, nos termos do qual, os tribunais administrativos julgam do cumprimento pela administração das normas e princípios jurídicos que a vinculam e não da conveniência ou oportunidade da sua actuação.

O respeito por este princípio coloca-se, neste âmbito, com especial acuidade visto que o legislador não restringiu o objecto da acção de condenação à prática do acto devido às pretensões vocacionadas para a prática de actos cujo conteúdo esteja legalmente pré-determinado. Não limitou portanto os poderes de injunção do juiz à prática de actos administrativos que, à luz do regime aplicável, sejam actos estritamente vinculados.

Nos termos do número 1 do artigo 71º CPTA, impende sobre o juiz o dever de, sempre que conclua pela invalidade de uma omissão ou indeferimento que tenha desembocado num pedido de condenação à prática do acto devido, apreciar a pretensão material do demandante ainda que não tenha existido qualquer tipo de averiguação material por parte do órgão competente. Tal pode suceder por vários motivos: o particular dirigiu um requerimento à administração e esta não se pronunciou, a administração pronunciou-se recusando a pretensão do interessado, mas não chegou a praticar quaisquer actos de instrução, ou praticou actos de instrução, mas esses padecem de vícios que os tornam juridicamente inúteis.

Perante estes casos, coloca-se a seguinte questão: pode o Tribunal, tendo em vista o conhecimento de fundo da pretensão subjectiva, efectuar a indagação necessária, quer através de diligências de prova quer através de diligências oficiosas, emitindo ma sentença de condenação em sentido estrito ou, pelo contrário, se deve limitar a proferir sentença nos termos do artigo 71/2º, condenando a administração a tramitar adequadamente a pretensão do interessado, com respeito somente critérios conformadores e delimitadores que o tribunal possa determinar com base no material probatório disponível? Ou, colocada a questão de outro modo, constituem os dados fácticos, ou melhor a sua inexistência ou insuficiência, limites intrínsecos da sentença de condenação?

Impõe-se uma precisão: a dificuldade da interpretação subjacente ao número 1 do artigo 71º CPTA apenas se coloca em relação aos actos administrativos de competência vinculada, por contraposição aos actos de competência discricionária. No que diz respeito a estes últimos, a questão nem se suscita, visto que não integram no âmbito de aplicação do 71º/1, de outro modo, estar-se-ia perante uma clara violação dos limites funcionais dos poderes do juiz na acção de condenação, por desrespeito do princípio da separação de poderes. Porquanto, o que caracteriza a margem de livre apreciação é a circunstância de esta não se esgotar na mera subsunção dos factos às normas, antes reclamando a realização de um juízo de valoração, que comporta nomeadamente a formulação de juízo de prognose, a avaliação de alternativas, a determinação de prioridades. É de facto inegável que existe uma ligação indissociável entre a recolha e a selecção de factos e a formulação de juízos valorativos a eles reportados, que não deve, desta forma, ser posta em causa pelo juiz.

A meu ver, a melhor orientação é aquela segundo a qual a posição de princípio não poderá de deixar de ser aquela que impõe ao tribunal que este empreenda todos os esforços possíveis de molde a alcançar uma decisão de fundo sobre a pretensão, não se limitando a uma mera devolução da questão à administração. A inexistente ou insuficiente tramitação não pode por si ser invocada como circunstância impeditiva de o tribunal conhecer do fundo da questão.

A este propósito parece-me relevante transcrever um pequeno excerto de Huergo Lora : «se se quer que o contencioso administrativo vá mais além que a simples revisão de actos administrativos, a actividade judicial não pode depender em absoluto, de que a administração tenha tramitado previamente um procedimento. O procedimento administrativo pode ser a sede adequada para a obtenção de dados e conhecimentos técnicos indispensáveis à interpretação das normas aplicáveis e para decidir da sua procedência ou improcedência da pretensão formulada, mas os vícios ou carências da sua tramitação não podem inutilizar o processo judicial posterior».

Nem se contraponha que a esta solução de princípio se opõe o princípio da separação de poderes, mormente por este impor a delimitação entre as tarefas da aplicação originária da lei (para a qual é competente a administração) e da jurisdição administrativa que consistiria num controlo «a posteriori» da actuação administrava, porquanto me parece que, por si, o princípio em apreço não rejeita tal orientação.

Senão vejamos, do princípio da separação de poderes não resulta qualquer direito de primazia da administração de modo a ter de ser esta a primeira a emitir a decisão conformadora acerca de uma posição ou situação jurídica. Este princípio não pode assumir esta dimensão de obrigação de precedência cronológica da administração. Não só porque a ela se opõe a tutela efectiva das posições jurídicas subjectivas dos particulares (que em caso de omissão total ver-se-iam sempre na circunstância de recusa de conhecimento de fundo por parte do tribunal, porquanto este sempre devolveria a questão para a administração), nem, por outro lado, a ela não se opõe a construção dogmática e axiológica do princípio da separação de poderes.

Acresce que o legislador reconhece isso mesmo ao permitir no artigo 67º CPTA que a acção de condenação possa ser efectivada no caso de omissão simples, isto é, quando a administração, perante o requerimento do particular se tenha mantido numa situação de passividade, não emitindo qualquer decisão expressa. Nesta situação, a ausência de acto administrativo prévio não deixa de impor ao tribunal que profira sentença condenatória.
Bem como noutras matérias essa precedência cronológica é relativizada pelo legislador, atente-se por exemplo no regime de contencioso pré-contratual, nos termos do qual pode o juiz reorganizar o procedimento.

Admite-se todavia que em determinadas situações, devidamente fundamentadas e casuisticamente apreciadas, possa o tribunal demonstrar que no caso concreto, atentas a complexidade e especificidade técnicas de que se revestem determinadas questões, seja contraproducente ou não seja exigível a realização, por parte do tribunal, de diligências probatórias. Como se sabe, em conformidade com o que foi supra referido, a administração afigura-se como um órgão, atentas as suas características orgânicas e procedimentais, mais vocacionado para a resolução de tais questões.

Todavia, a devolução da questão à administração nos termos do art. 71/2º CPTA não é motivado pela observância do princípio da separação de poderes, mas em bom rigor por um imperativo de eficácia. Pois se a consagração da acção de condenação tem como «ratio» assegurar a tutela efectiva das posições jurídico-subjectivas dos particulares, e devendo esta ser entendida como tutela eficaz, nos casos de especial complexidade pode o respeito por este princípio aconselhar a devolução da situação à administração. Acresce a este argumento um outro: a necessidade de assegurar a funcionalidade do sistema judicial que seria posto em causa se entendêssemos que o tribunal estaria obrigado em situações de especial complexidade técnica, que acarretam necessariamente um acréscimo de morosidade, a proceder às necessárias averiguações materiais.

Importa agora proceder à análise do número 2 do artigo 71º CPTA.
Sempre que a prática do acto pretendido pelo particular envolva a formulação de valorações próprias da função administrativa e a apreciação do caso concreto não permita identificar apenas uma solução como legalmente possível, o tribunal não pode determinar o conteúdo do acto a praticar, mas deve explicitar as vinculações a observar pela administração na emissão do acto devido.

O recurso à expressão «valorações próprias da função administrativa» remete-nos para a prática de actos em que a administração dispõe de margem de livre decisão
Não obstante, a actuação administrativa discricionária não é uma zona livre de direito. O espaço de liberdade apenas existe na medida em que seja conferida por lei e, na medida, em que não seja ultrapassado qualquer limite imposto pelo bloco de legalidade. Trata-se pois de uma decorrência dos princípios da legalidade e da tutela jurisdicional efectiva dos particulares (artigos 20º/5 e 268º/4 CRP).

Podemos identificar dois limites da margem de livre decisão: as vinculações legais e os limites imanentes.
As primeiras são estabelecidas pelas próprias normas que conferem a margem de livre decisão ou por normas conexas àquelas.
Os limites imanentes, por sua vez, reportam-se ao cumprimento das normas constitucionais que regulam o exercício da margem de livre decisão (de que decorrem determinados parâmetros aferidores da validade da actuação administrativa; como os princípios da actividade administrativa - boa fé, imparcialidade, legalidade, prossecução do interesse público, protecção das posições jurídico-subjectivas dos particulares - e os direitos fundamentais).

A aplicação dos referidos limites pode redundar que, num determinado caso concreto, apenas exista uma decisão juridicamente admissível. Ou seja, não obstante, em abstracto, à administração ser reconhecido um espaço de autodeterminação, a observância das normas e princípios jurídicos dele conformador pode culminar que, no caso concreto, só possa praticar um acto com certo conteúdo. Nestes casos, estamos perante uma situação de redução a zero da margem de livre decisão que deve, por esse motivo, ser valorada como se de um acto vinculado se tratasse. Em relação a estas, pode o tribunal proferir sentenças de condenação estrita.

Obviamente que a sentença de condenação estrita apenas é possível se a redução a zero da margem de livre decisão integrar não só a discricionariedade de acção (isto é, não há em bom rigor uma opção entre praticar ou não o acto) como a discricionariedade de escolha quanto ao conteúdo da decisão administrativa. De outro modo, se apenas existir uma redução da margem de livre decisão quanto à prática ou não do acto, ao juiz não é reconhecida a possibilidade de proferir uma sentença de condenação estrita, apenas podendo condenar a administração à prática do acto e não à prática do acto com certo conteúdo.

Estando em causa o exercício de margem de livre apreciação que não seja reconduzível a uma única actuação concreta juridicamente admissível quais são os limites dos poderes de pronúncia do juiz?

Nesta situação, o juiz não pode determinar o conteúdo do acto a praticar mas apenas proferir uma sentença-quadro que identifique as vinculações a observar pela administração na emissão do acto devido. O juiz deverá, por conseguinte, adoptar um método de controlo negativo, limitando-se a excluir as soluções que desrespeitem os valores jurídicos ínsitos, mormente, nos princípios plasmados no artigo 266º/2 CRP. Ou seja, o juiz não pode densificar e determinar qual a solução que deve ser adoptada, numa lógica de controlo pela positiva, mas somente a condenar a administração a repetir o acto sem que, ao fazê-lo, reincida nos vícios anteriormente cometidos. Para lá desta limitação, a administração continua pois a dispor de liberdade na escolha dos pressupostos relevantes para a questão e na sua valoração.


Notas bibliográficas:
- Almeida, Mário Aroso de Almeida,« Comentário ao Código de processo nos tribunais administrativos»
- Cadilha, António, «Os poderes de pronúncia jurisdicionais na acção de condenação à prática do acto devido e os limites funcionais da justiça administrativa» in: Estudos em homenagem ao Prof. Sérvulo Correia, Vol. 2
- Cortês, Jorge, «Acção de condenação à prática do acto devido: poderes de pronúncia do tribunal», revista do ministério público, nº107

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