domingo, 22 de maio de 2011

Aquiescência e Sobrevivência

Situado na sequência da legitimidade no CPTA, o artigo 56º, sob a epígrafe “aceitação do acto” é um preceito que embora curto e sintético, é já gerador de alguma controvérsia.

De facto, ainda existe um sector da doutrina que questiona a autonomização da ausência de aceitação do acto administrativo como um pressuposto processual.

Da mesma forma, há até quem questione a própria constitucionalidade desta opção do legislador.

Lancemos então a aceitação do acto aos leões e atentemos na sua luta pela sobrevivência.

A aceitação do acto consiste, para os Professores Mário Aroso de Almeida e Vieira de Andrade, num pressuposto processual negativo. Assim, será a ausência desta aceitação pelo particular uma condição necessária para a apreciação do mérito da causa pelo juiz. Uma vez realizada a aceitação, o particular verá o seu direito de impugnação precludido.

Conforme resulta do nº 1 do artigo 56º, a aceitação só fará sentido depois da prática do acto e nunca antes, nem sequer durante o procedimento administrativo. Após a prática do acto, ela já pode ocorrer antes ou durante a pendência da acção. Isto porque é a prática desse acto que o torna susceptível de impugnação.

Note-se que a aceitação do particular pode ser expressa ou tácita, o que resulta dos números 1 e 2 do artigo 56º. A propósito da aceitação tácita, temos que esta deve resultar “da prática espontânea e sem reserva de facto incompatível com a vontade de recorrer”. Este preceito deve ser interpretado com especial cuidado já que é precisamente um dos argumentos suscitados para colocar aqui em causa a garantia constitucional do acesso à justiça. Evidentemente que, quando do comportamento fáctico do particular se deduz com grande probabilidade que este aceitou o acto administrativo, temos uma aceitação, pois ainda que não haja uma declaração expressa de aceitação, o preceito em análise, permite a aceitação tácita. Mas não bastam estes comportamentos probabilísticos. Propõe o Prof. Mário Aroso de Almeida uma interpretação restritiva do preceito, conjugada com o artigo 217º/1 CC. Segundo este autor, a aceitação tácita deverá ser livre, incondicionada e sem reservas para de facto precludir o direito de impugnação.

Além disso, só têm relevância a aceitação de actos anuláveis e não nulos. Isto porque, não só o tribunal pode conhecer vícios de nulidade oficiosamente (artigo 134º/2 CPA) como o facto de não estarmos perante “uma verdadeira decisão de autoridade da Administração que mereça a protecção acrescida da ordem jurídica” (Vieira de Andrade, p. 924) torna irrelevante a aceitação do acto nulo. Senão veja-se: um dos propósitos do regime da aceitação do acto é a estabilização do acto administrativo. Uma vez aceite, o acto estabiliza-se, não mais existe o direito à sua impugnação. Ora, os actos nulos nunca são estáveis, precisamente por poderem ser impugnados a todo o tempo.

Para o Prof. Vieira de Andrade, a aceitação do acto traduz sempre e necessariamente uma conformação do interessado com os efeitos de uma decisão desfavorável proferida pela Administração. Essa conformação tem que constitui-se num acto jurídico voluntário, livre e esclarecido (o aceitante deve ter perfeito conhecimento do conteúdo e efeitos do acto). Refuta este autor a aceitação baseada no receito do não acatamento do acto face ao poder da Administração, na ignorância, erro, dolo ou coacção. Aliás, este é também um dos requisitos para a legitimidade constitucional do instituto.

De facto, para este Professor a aceitação (ou como prefere chamar-lhe, a aquiescência), é um pressuposto processual autónomo. Nem a legitimidade nem o interesse em agir têm influência determinante sobre a independência da aceitação, e isto mesmo tendo em conta a sua inserção sistemática. Estamos de acordo com esta posição.

Segundo o Prof. Marcelo Caetano, numa doutrina já ultrapassada, a aceitação redundaria numa sanação da anulabilidade do acto quanto àquele interessado já que este perderia a legitimidade para impugnar. Neste entendimento, confundiam-se os conceitos de aceitação do acto, renúncia ao direito de recorrer e decurso do prazo para impugnar.

Mais tarde, Rui Machete e também Vieira de Andrade vieram fazer uma diferenciação importante entre aqueles conceitos: a aceitação, embora tendo os mesmos efeitos práticos da renúncia, produz essencialmente efeitos substantivos enquanto a outra produz efeitos processuais (o não exercício do direito de impugnação). Já o decurso do prazo acarreta mesmo efeitos diferentes (a caducidade do direito de recorrer) e nada tem a ver com uma manifestação de vontade do particular mas apenas com o decurso do tempo. Contudo, Rui Machete acaba por concluir que a aceitação do acto se trata na verdade de uma declaração negocial enquanto Vieira de Andrade conclui, e bem a meu ver, que estamos perante um simples acto jurídico. De facto, a vontade do interessado é totalmente irrelevante para a produção dos efeitos, que são determinados pela lei.

Para quem afirma que na realidade estamos perante um pressuposto dependente de um outro principal, a legitimidade activa, há que relembrar os seguintes argumentos: estamos perante uma norma legal específica – o 56º CPTA – que é filha única na nossa ordem jurídica, sem que nenhuma das outras próximas da nossa contenham disposição semelhante. Ora, se o artigo 56º for apenas parte integrante do pressuposto da legitimidade, para que servirá ele então? A este propósito, recalca o Professor Vieira de Andrade (p. 927): “se para a aceitação tácita do acto administrativo relevassem apenas os factos que implicassem a extinção do interesse directo, pessoal e legítimo, as normas legais sobre a apreciação do acto nada acrescentariam, pois que a legitimidade em sentido estrito, isto é, o interesse directo, pessoal e legítimo, como é opinião unânime e jurisprudência constante, tem de se manter durante todo o processo.”

Contudo, parece-me que o Professor Vasco Pereira da Silva, embora com uma opinião contrária à do autor citado, também não deixa de ter uma opinião bem sustentada. O ilustre autor também não aceita a aceitação do acto enquanto pressuposto processual autónomo. No entanto, não a reconduz ao pressuposto da legitimidade mas sim do interesse em agir. A meu ver, é uma solução bem mais lógica que a da legitimidade. De facto, ao aceitar o acto (pelo menos tacitamente), o interessado pode não perder a legitimidade (se considerarmos que a legitimidade é aferida em razão da alegação da titularidade de direitos) mas perde, sem sombra de dúvidas, o interesse em agir.

A segunda questão controvertida, a que fizemos alusão supra, é a da conformação da aceitação enquanto pressuposto autónomo com o direito constitucionalmente consagrado de acesso aos tribunais. Mais uma vez, também nesta querela, parece-me que a aceitação do acto administrativo consegue sobreviver.

Assim, tal como outros direitos fundamentais, existe a possibilidade de, nos termos do artigo 18º da Constituição, restringir este direito perante uma colisão ou uma disputa com outros valores que também se imponham. Quando a declaração ou comportamento concludente do particular sejam, nas palavras do Prof. Vieira de Andrade, “normativamente incompatíveis com a vontade de impugnar”, estamos perante esses valores. É o caso do princípio da economia processual, da dignidade e eficiência da função judicial, da estabilização do acto administrativo. O que se pretende com esta autonomização é, no fundo, que os meios processuais e neste caso a impugnação de actos administrativos, não sejam usados com ligeireza, de forma desnecessária ou até abusiva e dilatória. Quando estes valores devam prevalecer, deve o particular perder o seu direito. É claro que, e ressalva o Prof. Vieira de Andrade (p. 932) , essa ponderação deve ser feita pelo juiz no caso concreto: “Assim, não há perigo para os direitos fundamentais, porque, além da genuína voluntariedade da conduta do aceitante, o juiz vai ainda avaliar se há ou não a incompatibilidade do uso do direito de impugnação naquelas circunstâncias com princípios jurídicos gerais, num juízo normativo de ponderação de valores que envolve sempre, em última instância, o controle da proporcionalidade dos resultados – devendo, na dúvida, pronunciar-se pelo direito de impugnação”. Consequentemente, desde que outros valores ou interesses constitucionalmente garantidos não prevaleçam sobre aqueles e não se denote nenhuma desproporcionalidade nesta restrição, não vemos porque não aceitar a constitucionalidade da aceitação do acto enquanto pressuposto processual autónomo.

O Professor Vasco Pereira da Silva admite ainda, na sua tese de recondução da aceitação ao pressuposto do interesse em agir e com o objectivo de garantir a conformidade do regime com o 268º/4 da Constituição que o particular possa vir a revogar a declaração de aceitação do acto ou a modificar os comportamentos concludentes com o mesmo e que perante tal venha o juiz a apreciar o pedido com base na existência ou não do interesse em agir (Vasco Pereira da Silva, p. 374).

A luta pela sobrevivência da aceitação do acto administrativo culmina assim com uma vitória da mesma. Parece-me assim que uma autonomização da aceitação enquanto pressuposto processual é de toda a relevância e utilidade, até mesmo se pensarmos no andamento muito lento dos processos em Portugal. É uma forma de evitar o congestionamento dos tribunais com acções nas quais o interessado não tem nem demonstra um querer verdadeiro de impugnar.

MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA, Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, Almedina, 2007
RUI MACHETE, Sanação do Acto Administrativo Inválido, Dicionário Jurídico da Administração Pública, vol 7, Lisboa, 1994
VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, Almedina, Lisboa, 2009
VIEIRA DE ANDRADE, A Aceitação do Acto Administrativo in Volume Comemorativo do 75º Tomo do Boletim da Faculdade de Direito

Sofia Nunes
nº17110

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