terça-feira, 24 de maio de 2011

Os Poderes do Juiz Administrativo Após a Reforma

Com a entrada em vigor do novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais e do novo Código de Processo dos Tribunais Administrativos (doravante, CPTA), assistiu-se finalmente à concretização do modelo constitucional de Justiça Administrativa, há muito reclamado: superou-se o modelo contencioso de raiz francesa (o modelo de impugnação estritamente cassatório dos actos administrativos), centrado no recurso contencioso de anulação e fortemente limitador dos poderes de decisão do juiz, para passar a admitir-se uma nova relação de poder entre o juiz administrativo e a Administração assistindo-se ainda a um franco alargamento dos meios processuais ao alcance do particular.


O propósito primacial do CPTA, neste domínio, foi o de finalmente consagrar, no plano da legislação ordinária, o imperativo constitucional de assegurar que os tribunais administrativos proporcionem uma tutela jurisdicional plena e efectiva a quem a eles se dirige em busca de protecção no âmbito das relações disciplinadas pelo Direito Administrativo – aquilo que o art. 212.º, n.º 3, CRP, qualifica como litígios emergentes de relações jurídicas administrativas. Esse propósito é assumido logo no art. 2.º, revestindo a maior importância para a compreensão das opções do Código no referente à configuração dos meios processuais que passam a poder ser utilizados perante os tribunais administrativos. Assim, o art. 2º consagra o princípio de que toda situação jurídica sustentada em normas ou princípios de Direito Administrativo encontra na lei o meio adequado à sua actuação perante os tribunais administrativos. Correspondentemente, o art. 3.º esclarece que os tribunais administrativos passam a ter os mais amplos poderes de pronúncia, sem outras limitações para além daquelas resultantes da discricionariedade administrativa, nos domínios reservados à formulação de juízos de conveniência ou de oportunidade por parte da Administração. A partir do momento em que passa a ser possível deduzir todo tipo de pretensão, na verdade, não pode deixar de ser possível a emissão de qualquer tipo de pronúncia por parte dos tribunais.


A jurisdição administrativa deixa de ser, assim, como sucedia no regime anterior, uma jurisdição de poderes limitados, a cujos juízes não era reconhecida a possibilidade de emitir todo tipo de pronúncia, o que implica a superação da tradicional inibição em reconhecer aos tribunais administrativos múltiplos poderes de condenação da Administração. A tutela jurisdicional só é efectiva se for capaz de proporcionar a emissão de sentenças de condenação dirigidas contra a Administração sempre que seja essa a providência que melhor corresponda à configuração concreta da situação em juízo. A Administração deixa, pois, de só poder ser condenada ao pagamento de indemnizações, no âmbito das acções de responsabilidade civil, para passar a poder (e a dever) sê-lo sempre que esteja constituída em deveres jurídicos. E a condenação, importa notá-lo, tanto pode dizer respeito ao dever de praticar actos jurídicos como ao dever de realizar prestações materiais.


Por outro lado, o art. 3º, n. 2, confere ainda aos tribunais administrativos, o poder de fixar o prazo dentro do qual os deveres impostos devem ser cumpridos e, quando tal se justifique para assegurar o respectivo cumprimento, o poder de impor directamente aos titulares dos órgãos responsáveis uma sanção pecuniária compulsória, isto é, o dever de pagar uma quantia em dinheiro por dia de atraso, em relação ao prazo fixado para o cumprimento (art. 169.º).


Deste modo, o juiz passa agora a dispor de todos os poderes inerentes à função jurisdicional, nomeadamente os poderes de reconhecer direitos (art. 37.º, n.º 2, al. a)), condenar a Administração a comportamentos e prestações (art. 37.º, n.º 2, als. c), d), e)), adoptar medidas cautelares que considere convenientes (arts. 120.º, n.º 3 e 124.º, n.º 1), executar as suas decisões (art. 3.º, n.º 3), impor à administração sanções pecuniárias compulsórias (arts. 3.º, n.º 2 e 169.º) e ordenar as diligências de prova que considere necessárias para o apuramento da verdade (art. 90.º, em especial o seu n.º 1).


Entre os novos poderes de plena jurisdição atribuídos ao juiz administrativo em sede de reforma, assumem especial importância os poderes de condenação e consequentes poderes de substituição de que passou a usufruir, sendo-lhe hoje permitido proferir sentenças de condenação à prática de actos administrativos legalmente devidos, que tanto se podem traduzir numa condenação no puro dever de decidir, no exercício de poderes discricionários, como na condenação à prática de um acto com um determinado conteúdo, e ainda na determinação das vinculações a observar na prática do acto administrativo em causa. Neste âmbito, do art. 71.º resulta que, mesmo quando não esteja em causa a emissão de um acto de conteúdo vinculado, e a emissão do acto pretendido envolva, portanto, a formulação de valorações próprias do exercício da função administrativa, o tribunal deve determinar o conteúdo do acto a praticar sempre que a apreciação do caso concreto permitir identificar apenas uma solução como legalmente possível – o que a doutrina alemã qualifica como “redução da discricionariedade a zero”. Nos demais casos, o tribunal deve pelo menos explicitar as vinculações a observar pela Administração na emissão do acto devido.


Porque em particular o poder de substituição - isto é, o poder de os tribunais se substituírem à vontade da Administração quando esta não atenda às suas obrigações – implica que o próprio tribunal produza uma sentença que encerra o valor do acto não praticado pelos poderes públicos, mas ainda assim legalmente devido, este poder de substituição veio suscitar receios de sub-rogação do juiz na função administrativa.


Segundo o Conselheiro M. FERNANDO DOS SANTOS SERRA, a questão que se coloca não é tanto uma questão de legitimidade da existência de um poder de substituição judicial que, em caso de não cumprimento voluntário da sentença por parte da Administração, e desde que não se imiscua em áreas de livre apreciação subjectiva, é decerto indispensável ao restabelecimento do equilíbrio funcional entre os diferentes poderes do Estado, mas é, antes, a questão mais subtil da intensidade e desejável alcance deste poder de substituição, que importa juridicamente densificar[1]. Semelhantes receios de transformação do juiz em administrador, por eventuais excessos de activismo judiciário, foram sendo colocados a propósito dos novos poderes conferidos ao juiz administrativo no domínio da adopção de medidas cautelares, que se estendem hoje à intimação da Administração a realizar prestações de fazer ou não fazer, de pagar ou de dar, e que podem ir mesmo até à condenação da Administração a não praticar um acto administrativo.


Os novos poderes do juiz cautelar são de facto múltiplos e manifestam-se quer no decurso do processo cautelar, quer já na fase da decisão, quer ainda na garantia de cumprimento da providência e penalização por uso indevido do processo, designadamente, pela decisiva fixação de uma sanção pecuniária compulsória, a pagar pelo titular do órgão competente da entidade requerida, pela possibilidade, hoje acolhida, de condenação do requerente ao ressarcimento de danos causados ao requerido e eventuais contra-interessados, desde que com dolo ou negligência grosseira, e pela importante faculdade processual de condenar qualquer das partes por litigância de má fé[2].


No domínio das providências cautelares potencialmente mais intrometidas na actividade da Administração, destacam-se seguramente as providências de conteúdo positivo ou antecipatório, que buscam obter, antes que o dano aconteça, um bem a que o particular tenha direito, e cuja concessão imprudente poderia conduzir a uma situação gravosa de paralisia generalizada da Administração Pública, com o consequente impacto negativo sobre a realização do interesse público, sendo pois vital que a doutrina continue a trabalhar no sentido de dotar o juiz cautelar daqueles critérios que lhe permitam conceder ponderadamente este tipo de providências, com destaque para aquela que levanta, porventura, mais problemas – a intimação.


A isto acresce o facto de o CPTA prever que, em caso de incumprimento de sentença que tenha condenado uma autoridade administrativa à prática de um acto administrativo de conteúdo estritamente vinculado, o beneficiário da sentença pode intentar um processo executivo destinado a obter do tribunal a emissão de sentença que produza os efeitos daquele acto (arts. 164.º, n.º 4, al. c), e 167.º, n.º 6 do CPTA). Quando o quadro normativo reserva para a Administração o poder de definição primária em determinada matéria, mediante a prática de actos administrativos, o Código parte, em termos gerais, do pressuposto de que a Administração se beneficia de uma reserva de competência pela qual a ela cumpre introduzir a definição primária do Direito na matéria em causa. Quem for titular de um direito ou interesse legalmente protegido de conteúdo pretensivo, dirigido à emissão do acto em causa, não pode, por isso, pedir ao tribunal ab initio que se substitua à Administração na prática do acto devido, mas apenas que o tribunal imponha à Administração o dever de praticar esse acto, em toda a extensão em que as vinculações normativas o permitam (art. 71.º)[3].


Em suma, a Reforma administrativa, sob a égide do princípio da tutela jurisdicional efectiva, operou um efectivo alargamento dos poderes de cognição e de decisão do juiz perante a Administração. Contudo, conforme foi demonstrado, as normas que procederam a esse alargamento não violam o princípio da separação de poderes, nem proporcionam que o juiz se imiscua nas tarefas e no poder decisório constitucionalmente reservados à Administração Pública.


Nídia Mateus, n.º 17478








[1] M. FERNANDO DOS SANTOS SERRA, Os poderes do juiz no âmbito do CPTA e os limites da Justiça Administrativa, Intervenção do Presidente do Conselho Superior dos Tribunais Administrativos e Fiscais no Colóquio organizado pelo Centro de Estudos Judiciários, realizado em Lisboa a 30 de Maio de 2007, consultado em http://www.stadministrativo.pt/pdf/intervencoes_presidente/int37.pdf.



[2]Conforme refere o Conselheiro, são “poderes sem dúvida extensos, que agora assistem ao juiz cautelar administrativo, e que dele exigem a permanente busca de um equilíbrio difícil, mas vital, entre intento e contenção, já que é precisamente na aplicação de medidas cautelares, possivelmente potenciada pela menor rigidez na aferição dos respectivos critérios, que hoje mais se faz sentir a tensão entre, por um lado, o dever de julgar e, por outro, a proibição de administrar” (Os poderes…, p. 5).



[3] Segundo o Prof. M. AROSO DE ALMEIDA, “condenando à prática do acto, o tribunal proporcionará tutela judicial efectiva no plano declarativo. É, pois, já num segundo momento, em que o direito do interessado à emissão do acto vinculado foi formalmente reconhecido pela sentença de condenação, sem que a sentença tenha sido cumprida, que o CPTA assume ser da natureza da sentença condenatória, enquanto título executivo, habilitar o seu titular a exigir a adopção da providência apta a proporcionar-lhe o resultado a que tem direito – no caso, a emissão de sentença que produza os efeitos do acto vinculado que a Administração tinha sido condenada a emitir e não o fez. A Administração não deixa de ser titular, no plano substantivo, do seu poder reservado de definição primária sobre a matéria. No caso concreto, tendo sido judicialmente condenada a exercê-lo, não o fez. Passa-se, por isso, à fase executiva, e é nesse contexto que, ao emitir a sentença destinada a substituir o acto ilegalmente omitido, o tribunal é chamado a proceder à execução específica do direito do exequente – com o que se limita a proporcionar- lhe a tutela judicial efectiva a que ele tem direito, facultando-lhe a prestação de conteúdo jurídico a que a entidade executada estava obrigada” (Pretensões Dedutíveis e Poderes de Pronúncia dos Juízes no Novo Regime da Justiça Administrativa em Portugal”, in Revista CEJ, n.º 34, Jul./Set. 2006, Brasília, p. 46-47, consultada em http://www2.cjf.jus.br/ojs2/index.php/cej/article/viewFile/727/907).

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