segunda-feira, 2 de maio de 2011

A Natureza Jurídica da Aceitação do Acto

A figura da aceitação do acto, enquanto instituto do direito processual administrativo e, em particular, enquanto pressuposto processual negativo e especial, cuja verificação impede a apreciação do mérito da causa, tem sido objecto de grande controvérsia doutrinária.


Nos termos do artigo 56º do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), a aceitação implica a impossibilidade de impugnação judicial por parte do particular. Face a isto, poder-se-ia suscitar a inconstitucionalidade do preceito por violação do Princípio do Acesso ao Direito. No entanto, e tendo em consideração que o presente artigo 56º do CPTA tem correspondência com o artigo 681º, nº3 do CPC, importa referir o Acórdão do Tribunal Constitucional nº311/2000, no âmbito do qual se suscitou a inconstitucionalidade desta disposição por violação do artigo 20º, nº2 da Constituição, conduzindo a uma situação de denegação de justiça por também aqui a aceitação do acto pelo particular afastar a possibilidade de ele o impugnar judicialmente. Todavia, o Tribunal Constitucional vem julgar o preceito não inconstitucional.
Tal como vem configurada, a aceitação do acto pode ser expressa ou tácita, mas, tratando-se de uma manifestação de vontade tácita, tal como consta do nº2 do artigo 56º do CPTA, terá de resultar da prática, espontânea e sem reservas, de facto incompatível com a vontade de impugnar. Contudo, tendo em conta a concepção preconizada por MÁRIO AROSO DE ALMEIDA e CARLOS ALBERTO FERNANDES CADILHA in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos, o presente preceito deve ser interpretado restritivamente, pois não deixa de ser limitativo da garantia constitucional de impugnação contenciosa. Deste modo, os autores entendem que só uma aceitação livre, incondicionada e sem reservas poderá ser entendida como impeditiva do direito de acção. Para tanto, importa também referir como elemento interpretativo o disposto no artigo 217º do Código Civil no que concerne à declaração negocial tácita.


Feito um breve enquadramento do instituto, propomo-nos a tomar uma posição quanto à querela doutrinária da natureza jurídica da aceitação do acto. Será que se confunde com a renúncia ao direito de impugnar? Tem características autónomas ou deverá ser incorporada no pressuposto da legitimidade, à luz da sua inserção sistemática? Ou, pelo contrário, deverá ser equiparada com a queda do prazo de impugnação?

Tradicionalmente, a questão da aceitação do acto surgia, no direito português, como uma questão de legitimidade e, consequentemente representava o saneamento da anulabilidade do acto quanto a essa pessoa, afectando assim a legitimidade do aceitante (MARCELLO CAETANO) . A este propósito, VASCO PEREIRA DA SILVA, entende que este tratamento prende-se com os “traumas da infância difícil” do Contencioso Administrativo, pois a Doutrina objectivista então vigente não reconhecia o interesse em agir como pressuposto processual autónomo, representando-o como mera condição da legitimidade. Posto isto, o Professor reconduz a aceitação à falta de interesse processual, dado que o particular tanto pode emitir uma declaração expressa de aceitação, como pode resultar da prática, espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar. Ora, não faz sentido existir um direito de impugnação ad eternum quando do comportamento do particular se deduz que, com toda a probabilidade, já houve aceitação. Não obstante, não fica afastada a possibilidade de o particular, no decorrer dos prazos de impugnação, revogar a declaração ou alterar o seu comportamento, de forma a exercer o seu direito de agir em juízo; caso contrário, estar-se-ia a negar um direito constitucionalmente consagrado de acesso ao juiz administrativo - artigo 268º, nº4 da Constituição.

Num sentido diferente e inovador na Doutrina portuguesa, RUI MACHETE conclui que a aceitação é uma declaração negocial que, apesar de pertencer ao âmbito substantivo, produz efeitos processuais, pois ao extinguir a posição jurídica substantiva, o particular perde o seu direito de acção para defesa de um direito ou interesse, bem como o direito de recurso. Como refere o autor: «A posição de vantagem de um sujeito do ordenamento jurídico em ordem a um bem objecto do poder administrativo, (…) não sobrevive se desaparecer a possibilidade de impugnação do acto que lhe é desfavorável.» De tal forma que, se o tribunal for chamado a pronunciar-se de uma pretensão de tutela de um interesse ilegítimo ou inexistente, deverá considerar-se incompetente, pois, em rigor, não existe litígio.
Embora saliente a diferença estrutural entre a aceitação do acto, enquanto acto de disposição de uma situação subjectiva que se encontra na titularidade do particular, e renúncia ao recurso, por implicar uma mera manifestação unilateral da vontade, através da qual se abdica daquele direito em relação a uma determinada situação substancial, o autor admite que aquela tem os mesmos efeitos desta última. A falta de vontade de recorrer apenas distingue-se da renúncia e do decurso do prazo respectivo, porque situa-se no direito substantivo, mas os efeitos práticos são rigorosamente os mesmos. Citando o autor: «Aqui é a posição substantiva que, ao extinguir-se, arrasta consigo a perda dos meios da sua tutela processual. Ali é a destruição da tutela jurisdicional que degrada o interesse legítimo em simples interesse de facto, ou reduz a sua defesa aos meios administrativos graciosos.»

VIEIRA DE ANDRADE, por seu turno, assinala que a aceitação do acto não pode ser confundida com as figuras da renúncia ao recurso e do decurso do prazo de impugnação. Por um lado, a renúncia traduz-se numa manifestação de vontade do particular no sentido do não - exercício do direito de impugnar, enquanto a aceitação do acto tem subjacente uma manifestação de vontade positiva relativamente aos efeitos produzidos pelo mesmo. Por outro lado, o mero decurso do tempo, cuja consequência é a caducidade do direito de recorrer, nunca poderia exprimir uma manifestação de vontade, pois o não exercício pode ter sido determinado por diversas razões. Por oposição à doutrina desenvolvida por RUI MACHETE, o Professor entende que a figura trata-se de um «mero acto jurídico, perante cuja verificação a lei determina a produção de um efeito – a perda de faculdade de impugnar – independentemente do conteúdo da vontade do particular quanto à produção desse resultado.»
Estamos, portanto, perante um efeito de perda do direito que a lei impõe em face de uma atitude de conformação por parte do particular que se submeteu aos efeitos do acto. As normas que prevêem o efeito preclusivo da aceitação voluntária do acto (exigindo a jurisprudência que seja livre e esclarecida), explicam-se, desde logo, por motivos de economia processual e visam assegurar a estabilidade das decisões de autoridade da Administração. Desta forma, para além da perda da faculdade de impugnação, a aceitação livre do acto afasta a possibilidade de impugnação em outras situações, nomeadamente para evitar o uso abusivo ou emulatório, desnecessário ou dilatório da acção ou do recurso. Está em causa a ponderação de valores de estabilidade do acto administrativo e da economia processual, tendo como pressuposto o livre comportamento de aceitação do interessado. Assim, justifica-se a culminação do efeito preclusivo, à luz dos princípios da boa fé do particular e da proibição do venire contra factum proprium. Posto isto, a aceitação deve ser analisada como pressuposto processual autónomo quer da legitimidade, quer do interesse em agir, devendo a inadmissibilidade com a vontade de recorrer ser apreciada nos termos dos princípios supra enunciados, uma vez que poderia traduzir-se num comportamento abusivo do direito de acção.



Para terminar, parece que a qualificação jurídica adoptada por RUI MACHETE não surge desprovida de sentido. De facto, a aceitação encontra-se na disponibilidade do interessado, e daí tratar-se de uma declaração negocial, pois este determina o seu comportamento em função da sua pretensão. No entanto, inevitavelmente, o não-exercício de um direito substantivo acaba por produzir efeitos processuais.
Mas, por outro lado, não podemos aceitar que o juiz, no caso de o particular pretender revogar a declaração de aceitação ou modificar o seu comportamento, desde com respeito pelos prazos de impugnação, seja declarado incompetente. Quanto a este aspecto, seguimos a posição do Professor VASCO PEREIRA DA SILVA, nos termos da qual o juiz deve apreciar o comportamento do interessado, à luz do interesse em agir, só podendo rejeitar o pedido quando esse faltar. Defender o contrário será o mesmo que denegar o acesso à justiça do particular, violando-se assim o artigo 268º, nº4 da Constituição.



Bibliografia:

MARCELLO CAETANO, Manual de Direito Administrativo, I, 9ª ed. e II, 8ª ed.)

RUI MACHETE, Sanação do Acto Administrativo Inválido


VIEIRA DE ANDRADE, Aceitação do Acto Administrativo (in Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra – volume comemorativo)


VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2ªed., Almedina



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