terça-feira, 24 de maio de 2011

A Acção Popular

A Acção Popular

1. A Acção Popular como Instrumento Privilegiado na Tutela de Interesses Difusos.


1.2 Alargamento do Conceito de Legitimidade Activa

O problema da tutela judicial dos interesses difusos está especialmente associado a um problema de direito processual, a legitimidade para agir. De facto, as vias processuais típicas não são compatíveis com a protecção dos interesses difusos, em virtude de não reconhecerem legitimidade activa aos entes representativos desses interesses, ou aos cidadãos individualmente. Como conclui João Correia, no seu artigo sobre interesses difusos e legitimidade processual, o direito adjectivo virou as costas aos direitos económicos, sociais e culturais, criando obstáculos à sua efectivação; a conexão entre direito substantivo e direito adjectivo foi substituída por uma relação conflituante, ou, no mínimo, pelo total desacompanhamento do direito subjectivo pelo direito adjectivo.

A principal virtualidade da acção popular, consagrada no artigo 52º/3 CRP e regulada na lei 83/95, reside, assim, no colmatar das deficiências / insuficiências subjacentes a uma tutela jurisdicional baseada em concepções exclusivamente individualistas. Esta concepção redutora, na medida em que se confina à tutela de direitos subjectivos é insustentável em face da protecção reclamada para bens de fruição colectiva, em conformidade com o princípio da tutela jurisdicional efectiva (artigo 20º CRP). Deste modo, o alargamento da legitimidade, previsto na lei 83/95, (pois a legitimidade não é aferida com base no interesse directo e pessoal, art. 55º/1 a)) potencia uma extensão de controlo dos bens de fruição colectiva, prosseguindo uma verdadeira descentralização ao permitir uma intervenção processual a todos os que, por força da natureza inapropriável dos bens ameaçados, não têm legitimidade com base na noção de direito subjectivo e da correspectiva legitimidade singular que lhe está associada.

Por conseguinte, podemos configurar a acção popular como instrumento que atribui aos cidadãos faculdades de intervenção processual, quer na jurisdição comum, quer na jurisdição administrativa na tutela de bens jurídicos supra-individuais. Impõe-se uma precisão, a acção popular não configura um tipo de acção, mas antes um mecanismo através do qual se procede à extensão da legitimidade procedimental e processual, podendo existir quer na acção administrativa especial, quer na acção administrativa comum.

No que diz respeito ao seu âmbito objectivo rege o artigo1º/2 Lei 83/95 que enumera a título exemplificativo os interesse que se pretende ver tutelados.

No atinente ao seu âmbito subjectivo dispõe o artigo 2º/1 e 2. Em conformidade, Paulo Otero opera distinção entre:

- Acção popular individual: onde têm legitimidade quaisquer cidadãos no gozo dos seus direito civis e políticos.

- Acção popular colectiva: a lei conferiu legitimidade às associações e fundações defensoras dos interesses a que se refere o art. 32º/3 CRP, desde que se verifiquem determinados requisitos art2º/1 e 3.

- Acção popular pública: (art. 2º/2) conferindo às autarquias locais legitimidade activa processual relativamente aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição.

Importa apenas fazer breve referência à perplexidade provocada pelo art. 2º/1, in fine («independentemente de terem ou não interesse directo na demanda»). Esta só se pode justificar dada a lógica segundo a qual a lei 83/95 é aplicável a interesses difusos e colectivos e, igualmente, a interesses individuais homogéneos, sendo a estes últimos que se reporta a referência ao interesse directo.

Por isso se pode dizer que a acção popular configura o meio mais adequado para a tutela de interesses difusos, considerado como «uma das mais importantes conquistas processuais para a defesa de direitos fundamentas constitucionalmente consagrados (…) cujo objecto é, antes de mais, a defesa de interesses difusos, enquanto interesses de toda a comunidade» (Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição Anotada)



1.3 Reforço dos Poderes do Juiz

A Lei nº 83/95 determina um alargamento dos poderes do tribunal nas acções populares relativas a interesses difusos potenciando, deste modo, uma compatibilização entre a iniciativa dos indivíduos ou das associações e o empenhamento do tribunal na tutela daqueles interesses.

Desde logo, foi atribuída ao tribunal a faculdade de aferir da correcção da utilização da acção popular e da representação que é assumida pelo demandante. Ao abrigo da Lei nº 83/95, são dois os momentos em que esse controlo pode ser exercido pelo tribunal:

- um deles é o momento do despacho liminar, dado que a petição inicial deve ser liminarmente indeferida quando o tribunal entenda que é manifestamente improvável a procedência do pedido formulado pelo demandante (artº 13º da Lei nº 83/95);

- o outro momento é o da sentença final, dado que o tribunal pode decidir excluir a vinculatividade erga omnes da sua decisão com fundamento em motivações próprias do caso concreto (artº 19º, nº 1, da Lei nº 83/95).

Quer dizer: o tribunal pode controlar a justificação e a adequação da acção popular no momento do despacho liminar, mas também pode "desqualificar" essa acção aquando do proferimento da sentença final através da substituição da sua vinculatividade geral por uma restrição subjectiva dos seus efeitos.

Por outro lado, cabe ao juiz a iniciativa na recolha da matéria probatória, sem estar vinculado à iniciativa das partes, nos termos do art.º 17º da Lei nº 83/95. A concessão destes poderes inquisitórios ao tribunal da acção popular justifica-se pela necessidade de assegurar uma efectiva igualdade entre as partes e de proteger os interesses dos ausentes.

Ainda, nos termos do artigo 18º, pode o juiz, oficiosamente, atribuir efeito suspensivo ao recurso, sempre que ele não o tiver já, e sem que as partes sejam ouvidas (a audição das partes neste âmbito ditada por princípios da verdade material e da justa composição de litígios é defendida por Carla Amado Gomes em Farsa em dois actos: enganos e desenganos sobre o artigo 18º lei 83/95) de molde a evitar a produção de danos irreparáveis ou de difícil reparação, garantindo-se, desta forma, a não frustração do efeito útil da decisão judicial.

De facto, atenta a natureza frágil dos bens de fruição colectiva, o factor tempo deve ser valorado com especial acuidade. Na verdade, a urgência mais do que um factor de conformação externa da justiça dela faz parte. Pois, esta pressupõe antes de mais a celeridade do processo e a utilidade dos efeitos produzidos pela decisão judicial.

A ampliação dos poderes do juiz é especialmente justificada no âmbito de acções em que esteja em causa a defesa de bens de fruição colectiva, pois a ocorrência de danos, neste âmbito, culminaria na perda de neutralidade do juiz, pondo em causa o compromisso por ele assumindo na salvaguarda do interesse geral.


1.4 Eficácia do Caso Julgado

Neste âmbito, a regra geral é a da eficácia «erga omnes» da decisão judicial transitada em julgado.

Esta regra, prevista no art. 19.º, conhece duas ressalvas: improcedência do pedido por insuficiência de provas (limite objectivo) e inoponibilidade a quem se auto excluiu da representação, nos termos do art. 15.º (limite subjectivo).

Para se perceber o limite subjectivo é necessário atender ao previsto no art. 14.º da referida lei. Visto que estão em causa interesses difusos relativos a bens supra-individuais, o art. 14.º considera o autor popular representante daqueles que sejam titulares dos interesses em causa quando estes não se tenham auto-excluido da referida representação, nos termos do art. 15.º.

Para o efeito, o juiz, logo após o recebimento da petição, está obrigado a ordenar a citação de todos os potenciais interessados (feita através de anúncio ou anúncio difundido em meio de comunicação social ou publicitados em edital, consoante estejam em causa interesses gerais ou geograficamente localizados), convidando-os a exercer uma das duas alternativas: intervirem no processo (aceitando ou não ser representados pelo autor) ou excluírem-se da representação.

Esta alternativa foi importada do modelo norte-americano das «class actions», sendo um mecanismo que possibilita aos potenciais titulares de interesses protegidos a faculdade de se excluírem da representação, até ao termo da fase de produção de prova ou equivalente. Nada fazendo ou dizendo, o seu silêncio tem o valor de aceitação da representação.

Tal opção legal é objecto de críticas por parte de alguma doutrina, nomeadamente o Prof. Lebre de Freitas, pois a solução da referida aceitação em caso de passividade aplica-se indistintamente a interesses difusos, colectivos e individuais homogéneos. Se em face da indeterminabilidade dos titulares dos dois primeiros esta solução é compreensível, o mesmo não se pode advogar em relação aos últimos, pois estes são verdadeiros direitos subjectivos.
Além disso, a inidoneidade do meio da citação pode pôr em causa o acesso à justiça e aos tribunais por falta de conhecimento do potencial interessado.

1.4 Acção popular, um resquício de objectivismo?


O Prof. Paulo Otero considera que a acção popular confere uma natureza objectivista ao contencioso português, impedindo-se assim que se fale de uma pura e total subjectivização do mesmo. Afirma ainda que, prescindindo-se do interesse pessoal e directo no que toca à legitimidade, a acção popular transforma os autores populares em defensores da legalidade e do interesse público, afastando-se a ideia de que, para se obter uma tutela contenciosa, tem que se estar perante uma posição jurídica material reconduzível a um direito subjectivo ou a um interesse directo e pessoal. Por outro lado, os próprios poderes do juiz em sede de acção popular demonstram que o que está em causa é a defesa da legalidade.

Cumpre dar a nossa opinião. Ora, em primeiro lugar, pensamos que é indiscutível a existência de resquícios de objectividade no contencioso administrativo. Como tal, ainda que este seja marcadamente subjectivista, não podemos afirmar que estamos perante um modelo puro. Neste sentido concordamos com o aspecto relativo a um certo cariz objectivista da acção popular. Cremos que não poderia ser de outra forma atendendo à própria natureza dos valores que estão aqui em causa – interesses difusos e colectivos e interesses individuais homogéneos. Não estamos assim na acção popular perante a típica defesa do direito subjectivo sendo que, e como explicado acima, esta é o mecanismo próprio e eficaz de tutela de situações relativas a bens jurídicos supra-individuais.
Concordamos assim com a opinião do Prof. Paulo Otero no que toca à questão da legitimidade, relacionando-a com o cariz especial dos interesses que se pretende ver aqui defendidos. Por outro lado, afirmámos que o tribunal pode decidir excluir a vinculatividade «erga omnes» da sua decisão com fundamento em motivações próprias do caso concreto. Ora, entende-se assim que a regra é não haver a tal restrição subjectiva dos seus efeitos. Este traço é marcadamente objectivista pois, adoptando-se um modelo subjectivista que coloca o particular no centro da questão a repercussão dos efeitos da decisão cairá, e deverá recair, apenas sobre ele. Nos modelos objectivistas, estando em apreço questões de legalidade, fará sentido estender os efeitos da decisão para além dos que participam nela. Na acção popular passa-se o mesmo pois, tratando-se de um interesse difuso, e não estando em causa um interesse exclusivo, é importante que a sentença produza efeitos em relação à generalidade dos sujeitos interessados. O que é certo é que os interesses em questão na acção popular seriam dificilmente defensáveis se adoptássemos traços marcadamente subjectivistas. Esta acção vem assim temperar com um toque de objectivismo o cenário do contencioso administrativo.



Notas bibliográficas:

- Almeida, António, A Acção Popular e a Lesão dos Bens Ambientais”, in Revista Lusíada – revista de ciência e cultura
- Freitas, José Lebre, «A Acção Popular ao Serviço do Ambiente», in AB VNO AD OMNES, 75 anos da Coimbra Editora
- Gomes, Carla Amado, «Farsa em dois actos: enganos e desenganos sobre o artigo 18º lei 83/95»), in Textos de Direito do Ambiente
- Otero, Paulo, «A Acção Popular: configuração e valor no actual Direito Português», in conferência proferida na Ordem dos Advogados, 1999
- Sousa, Miguel Teixeira, «Legitimidade Processual e Acção Popular no Direito do Ambiente», in Direito do Ambiente, 1994

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