terça-feira, 17 de maio de 2011

Perspectiva histórica sobre os modelos de Contencioso Administrativo

O contencioso administrativo português e de matriz continental europeia de administração executiva ou de acto administrativo, tem oscilado entre dois modelos de justiça administrativa: o modelo objectivista e o modelo subjectivista.

Ambos os sistemas diferem um do outro em vários pontos. Numa perspectiva objectivista do contencioso, a função deste é essencialmente de controlo da legalidade e do interesse público sendo um processo moldado em torno do acto administrativo, no qual se vai verificar a legitimidade do poder exercido pela administração. Numa visão subjectivista a função do contencioso é a tutela dos direitos dos particulares e o objecto do processo é a lesão das posições subjectivas dos mesmos.

O modelo objectivista dominou em grande parte da Europa até meados do século XX, tendo as correntes subjectivista ganho terreno nos últimos anos vigorando actualmente no ordenamento jurídico português, um modelo que procura encontrar um equilíbrio entre estes dois. No entanto, para se entender o actual modelo de justiça administrativa, que resulta do declínio do modelo objectivista, é necessário fazer-se um enquadramento histórico da evolução que se deu na Europa e em Portugal desde os finais do século XVIII até aos dias de hoje.

No continente Europeu o modelo predominante, era o modelo francês de raiz objectivista que surgiu após a revolução francesa de 1789, e que se desenvolveu a partir da jurisprudência do Conseil d’ Etat, que era um órgão administrativo independente a quem competia a resolução dos litígios relativos à administração e que apresentava as seguintes características:

a) Com base numa ideia radical de separação de poderes, resultante de uma desconfiança em relação aos tribunais que eram dominados pela nobreza, estabelece-se um contencioso especial para administração que é subtraído à lógica própria dos tribunais judiciais, sendo a competência atribuída a órgãos administrativos independentes que actuam segundo um processo jurisdicionalizado. Assim, era a própria administração que se julgava a si própria pois era defendido na altura que “julgar administração é ainda administrar”.

b) É constituído um contencioso administrativo cujo âmbito essencial era o recurso de anulação de decisões administrativas que tendia a ser de mera legalidade e os actos eram impugnados com base em excesso de poder ou violação da lei, que pressupunha uma decisão administrativa prévia, ou seja, um acto administrativo. Se este não existisse era necessário ficcionar um acto tácito.Os poderes dos juízes eram limitados (consistiam em anular os actos praticados pela administração) e havia dificuldades em obter a execução das sentenças por parte da mesma.

c) Havia ainda a possibilidade de a lei designar outros meios de tutela judicial nomeadamente em matéria de responsabilidade civil e contratos administrativos.
d) O contencioso administrativo não era um processo de partes, estando o particular numa posição de subordinação perante administração

Assim, o modelo francês era um modelo essencialmente objectivista, que se centrava na fiscalização da legalidade das decisões administrativa;e os particulares, por sua vez, desempenhavam funções auxiliares de fiscalização da legalidade enquanto interessados no resultado.

Como diz o Professor Vasco Pereira da Silva “De acordo com a concepção clássica do Direito Administrativo o particular não era um sujeito, mas um mero ”objecto do poder soberano” (…) o particular não estava em juízo para proteger os seus próprios direitos, lesados por uma actuação administrativa ilegal, mas sim movido por um ““impulso altruísta””,de defesa da legalidade e do interesse publico uma ideia que era, em si mesma, um contra-senso.”

No entanto, o direito administrativo, por influência de concepções anglo saxónico, sofreu uma viragem de ideias associada a uma protecção judicial dos administrados, ou seja, um modelo subjectivista que foi instituído na Alemanha após a II Guerra Mundial. Inicia-se a partir deste período a jurisdicionalização total do contencioso, e os litígios entre os particulares e a administração passam a ser decididos por um verdadeiro tribunal independente e não por um órgão pertencente a administração, abandonando-se definitivamente a velha máxima que julgar a administração é ainda administrar. Institui-se, definitivamente, uma verdadeira justiça administrativa com uma separação orgânica da jurisdição comum.

Verificou-se no contencioso administrativo, como diz o Professor Vieira de Andrade, uma “acentuação dos aspectos subjectivistas no processo administrativo, enquanto um processo de partes, por exemplo no que respeita à legitimidade, aos poderes e deveres processuais das partes, ao uso dos meios cautelares, aos efeitos da sentença, aos limites do caso julgado, ou à execução das decisões judiciais.”

Em Portugal, entre 1832 até 1974 vigorou essencialmente um modelo objectivista inspirado no referido modelo francês no qual o contencioso administrativo, consistia num recurso de anulação de actos administrativos, havendo apenas jurisdição plena em certas matérias como por exemplo, nos contratos administrativos. A jurisdição administrativa é concebida como uma jurisdição limitada, quer numa dimensão substancial (restrição dos meios de acesso), quer no plano processual (tutela reduzida dos particulares), quer numa perspectiva funcional (poderes de controlo judicial diminuídos).

Um bom exemplo do que foi acabo de referir pode ser retirado do manual do Professor Marcelo Caetano. Escrevia o Senhor Professor no seu Manual de Direito Administrativo “os tribunais administrativos fiscalizam e mantêm a legalidade administrativa, funcionando para esse efeito e só para ele, como estações superiores da administração (…) Não se trata de um julgamento do órgão que praticou o acto ou da pessoa colectiva a que pertence, o que esta em causa é a legalidade do acto, não comportamento das pessoas, (…) com o fim de emitir a final um juízo de confirmação ou de anulação meramente declarativo”, o que revela o carácter objectivista do sistema como um processo de controlo da legalidade de actos administrativos. Era ainda admitida a hipótese de exclusão de fiscalização jurisdicional de actos administrativos por lei expressa. Como escreve o ilustre Professor “há ainda os actos excluídos da fiscalização contenciosa por lei especial por se julgar suficiente a fiscalização hierárquica jurisdicionalizada ou não, ou por se reputar inconveniente facultar o recurso contencioso”. Assim, os particulares podiam ver negado o acesso aos tribunais pelo simples facto de o legislador considerar que tal acesso é inconveniente, o que demonstra a reduzida tutela dos particulares e o facto de actividade administrativa poder escapar totalmente ao controlo dos tribunais, ou seja, impor-se como uma realidade insindicável.

Este panorama viria altera-se após a mudança na ordem politico constitucional ocorrida em 1974, que culminou com aprovação da constituição em 1976. Embora a actual Constituição que nos rege na sua versão original mantivesse a visão tradicional de um contencioso de legalidade, começaram a existir sinais de mudança com o a aprovação do Decreto-lei 256-A/74 que assegurava a execução das sentenças dos tribunais administrativos e consagrava um dever geral de fundamentação dos actos administrativos desfavoráveis.

No entanto, foi com a revisão do texto constitucional em 1982 que se caminhou claramente para uma subjectivização do modelo de justiça administrativa. Em traços muito sintéticos, a reforma da Lei Fundamental provocou a alteração do artigo 269º (actual art.º 268) da Constituição da Republica Portuguesa (CRP), levando a um alargamento do âmbito da jurisdição administrativa, com a previsão de um novo meio de acesso aos tribunais administrativos: a acção de reconhecimento de direitos ou interesse legalmente protegidos. Tal consagração veio instituir um mecanismo de tutela jurisdicional directa das posições jurídicas subjectivas dos particulares, ao lado do já existente recurso contra actos.

Apesar da revisão constitucional já ter sido um passo em frente persistiu a ideia da jurisdição administrativa como sendo uma jurisdição limitada. Daí que segundo o Senhor Professor Vieira de Andrade “é legitimo afirmar que só a partir revisão constitucional de 1989 se começou alterar de forma relevante o modelo de justiça administrativa que culminaria com a reforma legislativa de 2002” .

A revisão de 1989 garantiu o direito ao recurso contencioso a todos os titulares de direitos e interesses legalmente protegidos em face de todos os actos administrativos ilegais que os lesem, e alargou a tutela das posições jurídicas subjectivas dos particulares sempre que esta se revelasse necessária. Além disso, instituíu a jurisdição administrativa como jurisdição obrigatória no art. 221º nº1 alinha b) da CRP e definiu-a como jurisdição comum em matéria de relações jurídicas administrativas 211 nº3 da CRP. Desta forma, ficava agora definitivamente garantido o acesso dos particulares aos tribunais administrativos que era defendido na doutrina como sendo um direito análogo aos direitos liberdades e garantias.

As alterações introduzidas na revisão de 1989 foram definitivamente estabelecidas na ordem jurídica portuguesa com a revisão constitucional de 1997, que veio consagrar constitucionalmente o princípio da tutela jurisdicional efectiva e passa a prever a possibilidade de a administração ser condenada a praticar actos administrativos. Como se pode ver, o contencioso administrativo já foi muito para além de um controlo de mera legalidade dos actos administrativos.

No entanto apesar das sucessivas alterações ao texto constitucional, estas não foram acompanhadas pela legislação ordinária tendo havido uma compatibilização apenas com a reforma legislativa de 2002/04.Essa compatibilização seria feita com aprovação da lei 13/2002 de 19 Fevereiro, que aprovou o novo Estatuto dos Tribunais Administrativos e Fiscais (ETAF), e a lei 15/2002 de 22 Fevereiro que aprovou o Código de Procedimento dos Tribunais Administrativos e Fiscais (CPTA) tendo ambos os diplomas entrado em vigor no dia 1 de Janeiro de 2004.

A reforma legislativa acompanhando as revisões constitucionais, tem um pendor claramente subjectivistas mas manteve alguns aspectos objectivistas. Muito sumariamente os pontos essenciais da reforma foram:

a) A atribuição aos tribunais administrativos conforme previa a CRP competência nos litígios emergentes das relações jurídicas administrativas” artigo 1 e 4 da ETAF
b) O princípio da tutela jurisdicional efectiva artigo 2 nº 1 do CPTA
c) São criadas duas formas processuais “acção administrativa especial” e acção administrativa comum”
d) Alarga se a possibilidade de cumulação de pedidos
e) Mantêm-se um conceito muito vasto de legitimidade para impugnação de actos por parte do Ministério Publico, pessoas colectivas, órgãos da administração bem como na acção popular a qualquer cidadão com interesse difuso
f) Consagra se o principio da igualdade de armas
g) Alargou se a protecção cautelar

Assim a reforma consagrou um modelo subjectivista, transformando o processo administrativo num processo de partes e alargou os poderes do juiz perante administração.

Os traços objectivistas que se mantiveram dizem respeito à legitimidade activa, para fiscalização da legalidade dos actos administrativos e para defesa do interesse púlico, nomeadamente para impugnação de actos administrativos, ao conferir legitimidade a todos os interessados de facto na acção particular, estendo-a a associações e a todos os membros da comunidade na acção pública, e alargando-a ao Ministério Publico na acção para pratica de acto devido e contratos e em litígios inter-administrativos.

Em Portugal como de resto se passa noutros países da Europa Continental, vigoram modelos mistos, modelos predominantemente subjectivistas. Os modelos mistos são compostos por características objectivistas e subjectivistas, enquanto os modelos predominantemente subjectivistas, praticamente não contem características objectivistas. Actualmente já não vigoram na Europa modelos objectivistas puros devido a insuficiência que estes apresentam para salvaguarda dos direitos e interesses legalmente protegidos dos particulares.)

Mas não nos podemos esquecer que ambos os modelos têm as suas vantagens e desvantagens. Se é verdade que o modelo subjectivista permite uma maior protecção dos administrados, o modelo objectivista permite um maior controlo da legalidade porque alarga a legitimidade para o acesso aos tribunais, seja contra actos individuais seja contra normas, como acontece na acção pública ou na acção popular de modo a que a sociedade possa contribuir para a prossecução do interesse público. Além do mais, num mundo cada vez mais complexo em que se cruzam cada vez mais interesses privados e públicos, “que fazem surgir uma nova legalidade social”, são necessários mecanismos de reacção contra normas lesivas do interesse público. Assim para concluir, como diz o Professor Vieira de Andrade, “talvez a opção mais adequada para o legislador seja uma construção normativa que combine sem preconceitos aspectos de ambos os modelos, aproveitando, na medida do possível, as vantagens de cada um”.



Bibliografia:

Vieira Andrade, José Carlos « A Justiça Administrativa», 10ª edição, Almedina, Coimbra 2009

Caetano, Marcelo «Manual de Direito Administrativo», 4ª edição, Coimbra Editora, Coimbra 1957

Silva, Vasco Pereira da «O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise», 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2009

Rebelo de Sousa, Marcelo « Lições de Direito Administrativo», 1ª edição, LEX, Lisboa 1999


Salvador Lobo Antunes nº17528
Subturma 5

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