sábado, 21 de maio de 2011

A Legitimidade Activa na Defesa dos Interesses Individuais Homogéneos

No presente texto cabe tratar da divergência existente na nossa doutrina sobre a questão da legitimidade activa em sede de processo administrativo para defesa dos interesses individuais homogéneos, divergência esta, que ultrapassa a simples discussão teórica e se reflecte na prática processual, tendo um papel determinante na averiguação do pressuposto da legitimidade, não só, mas para o que nos interessa, no contencioso administrativo.

Os interesses individuais homogéneos são caracterizados pela sua origem comum, pela sua fonte partilhada, que poderá ser quer fonte objectiva (negócio jurídico, acto jurídico), quer uma fonte subjectiva (mesmo credor ou devedor de diversas relações jurídicas). A esta origem comum, junta-se na sua definição, a possível atribuição individualizada, identificação e determinabilidade dos seus titulares, de modo concreto e pessoal. São assim, interesses respeitantes, de modo individualizado a diversos sujeitos, geralmente dependentes de uma única questão de facto ou de direito, que quando equacionada e resolvida, permitirá, ainda que de forma variável face ao quanto e como, a cada sujeito em apreço o aproveitamento do direito de que é titular.
Os interesses individuais homogéneos surgem, deste modo, como interesses distintos dos denominados interesses difusos, uma vez que, estes últimos, embora partilhem como os primeiros a generalidade de titulares, sendo interesses da colectividade, não são susceptíveis de atribuição individual. São interesses radicados na própria comunidade, daí a sua ampla titularidade, que se reportam a bens por natureza indivisíveis e insusceptíveis de apropriação pessoal, sendo por isso, frequentemente designados direitos sem portador.

A vertente subjectiva vincada nos interesses individuais homogéneos, bem como a ausência de concretização na lei, pelo menos em sentido literal, como em seguida se verificará, são as principais responsáveis pela divergência que aqui se analisa.

A falta de legislação sobre os interesses transindividuais, deixa margem para esta ampla discussão, uma vez que muitos se apoiam na inexistente referência aos interesses individuais homogéneos, na Lei 83/95, Lei de Acção Popular e até, na própria Constituição da República Portuguesa (CRP), para defender a impossibilidade de aplicação, em sede de contencioso administrativo, do artigo 9º nº 2 do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), quando estejam em causa acções destinadas a reconhecimento ou defesa de direitos subjectivos homogéneos.
Os professores Aroso de Almeida e Carlos Cadilha, expoentes desta primeira tese, defendem que “ A CRP configurou a acção popular como um forma de legitimidade processual activa dos cidadãos, que poderá ser exercitada perante qualquer tribunal – individualmente ou por intermédio de associações representativas – independentemente do interesse pessoal ou da relação específica com os bens ou interesses difusos que estiverem em causa”, “ (…) a acção popular opera quando se verifiquem dois requisitos: um relativo á legitimidade activa – que, no nosso domínio está defendido na primeira parte do nº2 do artigo 9º, que carece de ser integrado pelas disposições dos artigos 2º e 3º d Lei 83/95 – e um relativo ao objecto – que se traduz no elenco de bens e valores que podem ser tutelados através dessa forma de acção, exemplificativamente referenciados na segunda parte do mesmo nº 2 do artigo 9º.
São, pois, os interesses difusos, cujo âmbito material se encontra definido no presente artigo – e não quaisquer outros interesses –, que são tuteláveis por via da acção popular (…)”
– (Mário Aroso Almeida/ Carlos Cadilha, Comentário ao CPTA, pag.72-78).
Assim, para os ilustres professores, a Lei 83/95, Lei de Acção Popular, circunscreve o recurso á tutela jurisdicional por parte dos titulares do direito procedimental de participação popular consagrados no artigo 2º da Lei 83/95 e no artigo 9º nº2 do CPTA, de modo exclusivo, á defesa de interesses difusos, interesses de todos e de ninguém em particular, mediante a constatação dos interesses dispostos no artigo 52º nº3 da CRP, para os quais remete a própria lei da acção popular no seu artigo 1º.
A Constituição ao consagrar estes direitos como os tuteláveis em sede de acção popular mais não fez do que delimitar o escopo de interesses passíveis de serem defendidos, legitimamente, por quaisquer cidadãos ou pessoas colectivas, mesmo sem interesse directo na demanda, aos interesses difusos, pois, ainda que a título exemplificativo, todos os interesses plasmados na lei fundamental, permitem apurar o intuito por de trás da acção popular, de defesa dos direitos de comunidade, não subjectiváveis, não abrindo porta, a quaisquer outros interesses, nomeadamente, aos interesses individuais homogéneos.
A subjectividade dos interesses individuais homogéneos descontextualiza-os face aos interesses protegidos pela acção popular, mediante interpretação feita por estes autores da natureza e essência da legitimidade popular no nosso ordenamento jurídico.

A posição supracitada encontra, todavia, oposição na doutrina portuguesa, na figura de ilustres nomes como os professores Vieira de Andrade, Gomes Canotilho e Vital Moreira, que defendem nas suas obras a extensão da acção popular aos interesses transindividuais, de que são exemplo, os interesses individuais homogéneos.
Para os autores em apreço, a Lei 83/95 destina-se a conferir o direito procedimental de participação popular para defesa de interesses, não só difusos, mas também individuais homogéneos, dado que estes últimos, possuem tal como os primeiros, um pendor social de relevância acentuada, que permite aos mesmos ingressar o leque de interesses a defender em sede de acção popular. Mas como o argumento de relevância social, dentro dos argumentos jurídicos, aparece como complementar e não determinante, os autores apresentam uma argumentação muito mais ampla, apelando á lógica jurídica, nomeadamente à interpretação da lei, dentro dos parâmetros do artigo 9º do Código Civil (CC), bem como aos princípios de Direito inerentes á consagração do direito de participação processual popular em sede, para o que nos interessa mas não só, do contencioso administrativo.
No que á interpretação da lei diz respeito, o articulado norteador da mesma consta do artigo 9º do CC, onde se diferencia nitidamente, diferentes elementos a ter em conta pelo intérprete na leitura que faz de qualquer norma jurídica, o elemento literal, o histórico e o sistemático e o racional. Assim, ao interpretar a lei, o intérprete não se poderá cingir ao texto da mesma, ao sentido puro e duro das palavras, sendo necessário que proceda a uma interpretação de acordo com as circunstâncias em que a lei foi elaborada, com o tempo em que foi redigida e com unidade do sistema jurídico, com as demais normas do ordenamento jurídico que traduzam o sentido em que lei deverá ser lida e aplicada. Como qualquer diploma jurídico, a Lei 83/95 não é, nem poderia ser, excepção a esta regra interpretativa, devendo por isso, olhar-se a todo o contexto da mesma, de modo a conseguirmos concluir a que interesses esta diz que respeito e, consequentemente, o quão ampla será a legitimidade activa em processo administrativo que a mesma consagra.
No contexto da lei em análise, em auxílio de uma interpretação coerente, cabe considerar a norma emanada do artigo 15º nº1, que prescreve:
“ Recebida a petição de acção popular, serão citados os titulares dos interesses em causa na acção de que se trata, e não intervenientes nela, para efeito de no prazo fixado pelo juiz, passarem a intervir no processo a título principal (…) ou se, pelo contrário, se excluem dessa representação, nomeadamente para o efeito de não lhe serem aplicáveis as decisões proferidas (…)”. Tal norma, ao conferir aos membros do grupo a que a acção popular diz respeito, a possibilidade de se auto-excluirem da mesma, não vendo as suas pretensões decididas na acção em curso, é fundamento bastante para considerarmos a protecção de interesses transindividuais em sede de acção popular, uma vez que, a auto-exclusão possibilitada pelo respectivo artigo, só será operável quando se reportar a bens divisíveis e portanto, a interesses, passíveis de serem defendidos em acção popular pelos titulares do direito procedimental popular e simultaneamente, em acção própria, pelos seus titulares facilmente individualizados, interesses esses, que mais não são, do que os ditos interesses individuais homogéneos.
Com esta norma, a Lei 83/95 parece não deixar margem para dúvidas quanto á possibilidade de acção popular na defesa de interesses individualizados, pois ao permitir a auto-exclusão posterior ao inicio do procedimento, pressupõe a existência do respectivo procedimento, legitimando o mesmo, em defesa de interesses que não os interesses difusos.

Mas se o artigo 15º nº1 da Lei 83/95 não bastar para convencer os mais cépticos quanto a uma acção de pendor popular na defesa de direitos homogéneos subjectiváveis, os autores defensores da segunda tese doutrinária, apelam ainda, ao carácter exemplificativo do artigo 1º da Lei 83/95 e, consequentemente, ao artigo 52º nº3 da CRP, como forma de demonstrar que a lei, inclusive a lei fundamental, ao consagrar uma lista exemplificativa de interesses tuteláveis em sede de procedimento popular, pretendeu somente nortear os aplicadores da lei, para a noção de interesses defensáveis por essa via e não estrangular a legitimidade popular, estabelecendo de forma rígida os interesses objecto de tutela.
A lei limitou-se a estabelecer uma lista de interesses sob forma de demonstrar o que se pretendia com a acção popular, que tipo de interesses poderiam estar em causa numa acção desta natureza, mas não afastou do âmbito de protecção todos os mais interesses, não escritos, mas que pela sua natureza pluríma preenchem de forma absoluta a essência existencial desta acção subjectivamente ampla, dos quais são exemplo, os interesses individuais homogéneos.
Ler na lei, uma rigidez que a mesma não estabeleceu, será desvirtuar a própria, criando direito e não interpretando, caminhando num sentido contrário ao próprio direito constitucional.

Além dos argumentos supracitados, o princípio da economia processual existente na nossa ordem jurídica, será certamente outro dos pilares do suporte da consagração dos interesses individuais homogéneos na nossa lei de acção popular, pois a possibilidade de defesa num única acção de direitos ou interesses derivados de uma fonte comum, com o ponto de ligação existencial entre si, conduzirá ao não entupimento dos nossos tribunais como centenas de pedidos diferenciados de reconhecimento ou atribuição de direitos, que impliquem a análise de uma mesma situação fáctica ou jurídica de forma repetida.

Assim, após esta explanação caberá então tomar posição pela doutrina, que a meu ver se adequa mais ao espírito do ordenamento e á importância e sentido da Lei de Acção Popular, a lei 83/95, acrescentando um dado, a meu ver relevante, ainda que não decisivo, na posição a adoptar.
No meu entender, tem razão os professores que defendem os interesses individuais homogéneos, como interesses tuteláveis em sede de acção popular, não esquecendo o subjectivismo que os caracteriza, mas apelando simultaneamente á comunidade dos mesmos no que respeita á sua origem e á praticabilidade da sua defesa pelos titulares do direito procedimental popular.
Convencem-me os argumentos avançados pelos mesmos, parecendo a interpretação da lei e os princípios norteadores da mesma apontar, efectivamente, no sentido de tutela dos interesses transindividuais por via de uma acção popular, estando assim, os titulares da respectiva acção legitimados, nos termos da Lei 83/95 e do artigo 9º nº2 do CPTA, a despoletar um processo administrativo unitário, em defesa de interesses individualizáveis e subjectivamente concretizáveis, afastando-se deste modo, a possibilidade de invocação de ilegitimidade activa quando outrem, que não cada um dos sujeitos titulares do direito subjectivo homogéneo, lançar mão de uma acção destinada á protecção e reconhecimento de posições subjectivas, da qual o melhor exemplo é a acção comum do artigo 37º nº 2 alínea a) do CPTA.
Julgo ser possível ainda, em reforço da posição perfilhada pelos ilustres mestres Vieira de Andrade, Gomes Canotilho e Vital Moreira, trazer á colação um dado de direito comparado, respeitante á consagração expressa no ordenamento jurídico brasileiro, tão próximo e inspirado no nosso Direito nacional, da acção popular face á defesa de interesses individuais homogéneos, que tem sido utilizada frequentemente em defesa dos direitos dos consumidores, obtendo resultados bastante favoráveis e criticas extremamente positivas ao longo da última década.

Pelo exposto, defendo a possibilidade e importância da defesa dos interesses individuais homogéneos em sede de acção popular, defendendo o alargamento de legitimidade popular a interesses outros, que não os interesses difusos, numa linha de coerência sistemática e de praticabilidade processual em sede de contencioso administrativo.

Bibliografia:
 Mário Aroso de Almeida/ Carlos Cadilha, Comentário ao CPTA, 2008, pág.72-78
 Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa (Lições), 10ª edição, 2009, pág. 177 e ss.
 Acórdão STJ, 27.09.1997,proc. 97B503
 Revista Portuguesa Direito do Consumo, prop. Associação Portuguesa Direito do Consumo, Coimbra 2006, nº46, Tese de Defesa dos Interesses Individuais Homogéneos dos consumidores pelo Ministério Público
 Mário Aroso de Almeida, o novo regime do processo nos tribunais administrativos, 4ª edição, 2005



Diana Pinto, nº17257

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