sábado, 9 de abril de 2011

Recurso Hierárquico Necessário Desnecessário

Ao se proceder à primeira revisão da Constituição de 1976, a Lei Constitucional nº 1/82, de 30 de Setembro, estabeleceu a garantia de recurso contencioso para obter o reconhecimento de um direito ou interesse legalmente protegido (art.268º, nº 3, da revisão constitucional de 1982). Foi, sem dúvida, um importante passo, abrindo o caminho para a institucionalização de meios de garantia contenciosa, os quais possibilitaram suprir a inaplicabilidade da protecção assegurada pelo meio tradicional do recurso contencioso de anulação.


A aprovação do Código de Processo nos Tribunais Administrativos (CPTA), traduz uma grande importância teórica e relevância prática, revelada na metamorfose do recurso hierárquico no novo contencioso administrativo, que passou, segundo o Prof. Vasco Pereira da Silva, de necessário a "útil"[i]. Em causa encontrava-se a necessidade de compatibilização das normas do novo processo administrativo que, ao concretizar o direito fundamental de acesso à justiça administrativa, consagram a norma jurídica da impugnabilidade dos actos administrativos em razão da eficácia externa e da susceptibilidade de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos, afastando expressamente toda e qualquer exigência de recurso hierárquico necessário com as normas de procedimento reguladoras das garantias administrativas.


A Constituição da República Portuguesa (CRP), já na sua versão primitiva de 1976, tendo apenas em conta a realidade material, garantia aos interessados recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos definitivos e executórios (nº 2, do art.269º).


Na versão de 1989 da CRP, aos administrados passou a ficar garantido não só o recurso de anulação de qualquer acto administrativo, que afectasse não só direitos ou interesses legalmente protegidos, mas também a protecção jurisdicional da administração plena (art.268.º, n.º5).


Antes de vigorar o actual CPTA, como se mencionou, o Prof. Vasco Pereira da Silva, defendia já, a não necessidade do acto administrativo ser definitivo e executório para que pudesse ser objecto de recurso contencioso. Assim passou a ser defensável que essa norma deveria considerar-se caducada por inconstitucionalidade superveniente, por força do art.268º, nº 4, da CRP, que garantia constitucionalmente aos interessados o recurso contencioso, com fundamento em ilegalidade, contra quaisquer actos administrativos, independentes da sua forma, que lesassem os seus direitos ou interesses legalmente protegidos.


Um acto só poderia ser definitivo, para efeitos de recurso contencioso, caso estivesse preenchido o princípio da tripla definitividade: o acto deveria ser definitivo em sentido material, horizontal e vertical, o que significava reduzir ainda mais o âmbito dos actos administrativos recorríveis, num sistema que fazia da definitividade critério de delimitação do acesso ao recurso contencioso[ii].


A admissibilidade do recurso contencioso não devia ficar dependente de pretensas características de obrigatoriedade e susceptibilidade de execução coactiva, mas sim da eficácia externa e lesiva dos actos administrativos. A executoriedade, como critério de determinação de acesso ao recurso contencioso, não fazia mais sentido, dado que a norma do nº 4, do art. 268º, consagrada na CRP, fazia caducar por inconstitucionalidade superveniente os pressupostos processuais da definitividade e executoriedade, anteriormente constantes, no nº 1, do art.25º, da revogada LPTA.


Com efeito, antes da presente reforma do contencioso administrativo, a inconstitucionalidade da regra do recurso hierárquico necessário configurava a violação de vários princípios: princípio constitucional da plenitude da tutela dos direitos dos particulares (art. 268º, nº 4, da CRP), dado que a inadmissibilidade de recurso contencioso, caso não exista previamente o recurso hierárquico necessário, nega o direito fundamental do próprio recurso contencioso; o princípio constitucional da separação entre a administração e a justiça (arts.114º, 205º e seg., 266º e sg., da CRP), uma vez que fazia precludir o direito de acesso ao tribunal pela não utilização de uma garantia administrativa, que não poderia ser senão facultativa; o princípio constitucional da desconcentração administrativa (art. 267º, nº 2, da CRP), dado que implicava a recorribilidade dos actos dos subalternos sempre que lesivos, atendendo a que o superior continuava a dispor de competência revogatória (art. 142º, do CPA); e por fim o princípio da efectividade da tutela (art. 268º, nº 4, da CRP), em razão do efeito preclusivo da impugnabilidade da decisão administrativa.


Começa, assim, a ser entendimento geral, que o CPTA afasta inequívoca e definitivamente a "necessidade" de recurso hierárquico, como pressuposto de impugnação contenciosa dos actos administrativos, dado que se consagra o Princípio da impugnabilidade contenciosa de qualquer acto administrativo que seja susceptível de lesar direitos ou interesses legalmente protegidos dos particulares ou que seja dotado de eficácia externa, conforme expressa o art.51.º, n.º1.


Neste mesmo sentido vão as disposições do art. 59º, n.º 4 e 5 do CPTA, quando nos diz que a utilização dos meios de impugnação administrativa – sem distinguir entre os meios necessários e facultativos – suspende o prazo de impugnação contenciosa[iii]. Em virtude da regra da suspensão dos prazos, a impugnação administrativa facultativa, transformou-se, com o CPTA em impugnação recomendável[iv]. Saliente-se que, na verdade, estabeleceu-se o efeito suspensivo do prazo de impugnação contenciosa, mas não se estabeleceu o efeito suspensivo da própria execução de decisão administrativa, o que implica a generalização, a todas as garantias contenciosas, do regime jurídico que se encontra estabelecido, no nº 1, do art. 170º, do CPA, para os casos de recurso hierárquico necessário.


Posição diferente é sufragada por Mário Aroso de Almeida e Carlos Esteves Cadilha, em anotação ao art.51º do CPTA, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativos[v], que passo a citar: Nem o diploma preambular, nem o CPTA, tomam porém, posição expressa quanto às múltiplas disposições legais avulsas que prevêem mecanismos de impugnação administrativa necessária (reclamação, recurso hierárquico ou recurso tutelar). Parece dever, assim, entender-se que estas disposições de direito substantivo continuam em vigor, pelo que, nos casos nelas previstos, é necessária a utilização da impugnação administrativa”.


Refere ainda o Prof. Vieira de Andrade[vi], na mesma linha de pensamento, que o CPTA não exige que os actos administrativos tenham sido objecto de prévia impugnação administrativa para que possam ser objecto da impugnação contenciosa. Das soluções consagradas nos art.ºs 51º e 59º, n.ºs 4 e 5, decorre, por isso, a regra de que a utilização de vias de impugnação administrativa não é necessária para aceder à via contenciosa. Na ausência de determinação legal expressa em sentido contrário deve entender-se que os actos administrativos com eficácia externa são imediatamente impugnáveis perante os tribunais administrativos, sem necessidade da utilização de qualquer via de impugnação administrativa[vii].


Várias críticas se impõem fazer a esta tese. Desde logo, ao aceitarmos esta tese teríamos que admitir que existe uma área dita “especial” de certas categorias de actos administrativos em derrogação do regime geral, teríamos um regime “dual”! Que segurança jurídica trará este regime “dual”? É sim necessário a criação de um regime que harmonize todas estas disposições, contudo, seguindo a posição do Prof. Vasco Pereira da Silva, entendo que houve uma espécie de “caducidade” destas normas, ditas especiais, na medida, em que o seu objecto desaparece.


Por outro lado, admitir a existência do recurso hierárquico necessário, levaria a uma contradição insanável, que atingiria o princípio da segurança jurídica. Admitir que o recurso hierárquico necessário passou a ser desnecessário, mas, que ele pode continuar a ser exigido como condição prévia de impugnação, quando já não pode ser considerado um pressuposto processual não faria qualquer sentido.


Tendo o recurso hierárquico deixado de ser um pressuposto processual de impugnação dos actos administrativos, acolher a sua existência levaria a que admitíssemos garantias administrativas desnecessárias, uma vez que o CPA estabelece o princípio de promoção do acesso à justiça (art.7.º), do qual resulta que devem ser evitadas diligências inúteis.


A solução mais adequada, para compatibilizar os regimes jurídicos do procedimento e do processo, seria a revogação expressa das disposições que prevêem o recurso hierárquico necessário, apenas por uma questão de certeza e de segurança jurídica, uma vez que se deve considerar que elas já caducaram. Devendo por outro lado, proceder-se à disseminação da regra da atribuição de efeito suspensivo a todas as garantias administrativas[viii]. A título transitório, enquanto o legislador não revogar, ou alterar profundamente, o Código de Procedimento Administrativo, o particular lesado, por um acto administrativo de um subalterno que preencha a anterior previsão do recurso hierárquico necessário, pode fazer as seguintes opções: 1) impugnar hierarquicamente a decisão administrativa, sem mais nada fazer, aceitando, como é comum, o respectivo resultado; 2) intentar, de imediato, a acção administrativa especial, acompanhada ou não do pedido cautelar de suspensão de eficácia do acto administrativo; 3) proceder à prévia impugnação hierárquica, gozando do efeito geral de suspensão do prazo de recurso contencioso e só depois, em função do resultado da garantia administrativa, utiliza ou não a garantia administrativa; e, por fim, 4) impugnar hierarquicamente a decisão administrativa, gozando do efeito de suspensão da eficácia, tem a possibilidade de aceder imediatamente a tribunal, sem necessidade de esperar pela decisão do recurso hierárquico.


Em suma, julgo ser de aceitar a tese defendida pelo Prof. Vasco Pereira da Silva, na medida em que, bem vistas as coisas, o que o art. 51º, 1 do CPTA trouxe de novo foi a extinção da definitividade como critério de recorribilidade. Deixou de ser importante para efeitos de impugnação judicial que a palavra da Administração pertencesse ao órgão do topo da hierarquia. Tanto é assim que o art. 11º, 5, do CPTA prevê a comunicação da existência do processo judicial ao “ministro ou órgão superior da pessoa colectiva” sempre que o autor do acto esteja subordinado a poderes hierárquicos. O que significa que, na generalidade dos casos, os meios de impugnação administrativa ainda que especialmente previstos na lei, perdem a natureza de “necessários”. A sua “necessidade” justificava-se para conferir definitividade (vertical) ao acto. Tendo a definitividade vertical do acto caído, como critério de recorribilidade, também deverá cair o carácter necessário da impugnação administrativa, destinada a garantir essa definitividade. Pode, contudo, haver outras situações em que a impugnação administrativa não serve apenas para conferir a definitividade vertical, designadamente porque não existe hierarquia, ou porque se entende importante a introdução de uma outra pessoa colectiva na definição da situação jurídica. Nestes casos, mesmo anteriores ao CPTA, penso que deve entender-se que a impugnação administrativa prévia é necessária.








[i] Vasco Pereira da Silva, De necessário a útil: a metamorfose do recurso hierárquico no novo contencioso administrativo, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 47, Setembro / Outubro, 2004, p. 21.



[ii] Vasco Pereira da Silva, Em Busca do Acto Administrativo Perdido, Coimbra, Almedina, 1995, pp. 629 e 645.



[iii] Também o acórdão do STA de 10 de Setembro de 2008 (Processo n.º449/07) entendeu ser imediatamente impugnável, à luz do princípio constante do art.51.º, n.º1, a deliberação do Conselho Disciplinar do Conselho superior do Ministério Público que aplicou uma pena disciplinar, considerando-se, em consequência, como não necessária a reclamação pra o plenário do mesmo órgão, prevista no art. 29.º, n.º5 do EMP.



[iv] Sobre o Projecto do Código de Processo nos Tribunais Administrativos, consulte-se Paulo Otero, Impugnações administrativas, in Cadernos de Justiça Administrativa, nº 28, Julho / Agosto de 2001, pp. 52.



[v] Mário Aroso de Almeida e Carlos Esteves Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativo, Almedina, 3.ª edição, 2010, pp.348.



[vi] José Carlos Vieira de Andrade, A justiça Administrativa, Lições, Almedina, 11.ª edição, 2011, pp.274 a 276.



[vii] Posição também defendida no Acórdão do Tribunal Central Administrativo do Sul de 10 de Novembro de 2010 (Processo n.º 06326/10).



[viii] Vasco Pereira da Silva, O Contencioso no Divã da Psicanálise, op. cit.,pp. 361.

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