sexta-feira, 22 de abril de 2011

Acção Popular Administrativa

Apesar de prevista no art. 52.º, n.º 3 da Constituição da República Portuguesa (CRP) desde a Revisão constitucional de 1989, só em 1995 a acção popular obteve concretização legislativa mediante a aprovação da lei n.º 83/95, de 31 de Agosto – Lei da Acção Popular (LAP) –, defendendo alguma doutrina a existência, até então, de inconstitucionalidade por omissão.


A acção popular foi concebida como instrumento jurisdicional de tutela de bens jurídicos supra-individuais (a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público – art. 1.º, n.º 2 da LAP – aos quais o art. 9.º, n.º 2 do CPTA acrescenta os valores ou bens relativos ao urbanismo e ao ordenamento do território, por ser matéria específica da área de contencioso administrativo), aproximando-se, nalguns pontos, da acção popular e das acções colectivas brasileiras, sendo também fortemente influenciada pelas class actions dos Estados Unidos da América. Através da LAP, o legislador não consagrou um meio processual autónomo, mas sim um conjunto de especialidades de regime que se enxertam nos meios processuais concretamente utilizados pelos autores populares, na jurisdição administrativa ou cível [1]. Para além do alargamento substancial da legitimidade processual activa, constituem especificidades do regime processual da acção popular, designadamente, o reforço dos poderes do juiz e a eficácia do caso julgado.


A questão mais evidente introduzida pela LAP prende-se com a extensão da legitimidade activa, a qual se traduz na existência de três modalidades de acção popular: acção popular individual (desencadeada em termos pessoais, por quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos, independentemente de possuírem um interesse directo na causa), a acção popular colectiva (desencadeada por associações e fundações, com personalidade jurídica, defensoras, por atribuições ou objectivos estatutários, dos interesses referidos na LAP, independentemente de terem interesse directo na demanda) e a acção popular pública (podendo tratar-se de uma acção pública originária, se desencadeada pelas autarquias locais relativamente aos interesses de que sejam titulares residentes na área da respectiva circunscrição – art. 2.º, n.º 2 LAP –, ou de uma acção popular pública superveniente, no âmbito do exercício pelo Ministério Público (MP), da possibilidade de intervenção processual substitutiva, designadamente em casos de desistência da lide, transacção ou de comportamentos lesivos dos interesses em causa – art. 16.º, n.º 3 LAP) [2]. A LAP excluiu o MP do conjunto das pessoas legitimadas a agir. Esta opção é olhada pela doutrina com alguma perplexidade, uma vez que diversas disposições avulsas lhe conferem legitimidade em vários sectores específicos [3]. Por outro lado, em termos de direito comparado, atendendo à experiência brasileira (uma das fontes de inspiração da LAP), verifica-se que mais de 90% das acções populares civis públicas são desencadeadas pelo MP, facto que não comoveu o legislador português [4]. Contudo, o art. 9.º, n.º 2 do CPTA vai mais longe no alargamento da legitimidade activa, conferindo ao MP uma genérica capacidade de iniciativa processual, a qual corresponde a uma generalização dessas atribuições em sectores específicos. Conforme salientam Fernandes Cadilha e Aroso de Almeida, a atribuição desta nova função ao MP poderá justificar-se pela conveniência de agilizar a tutela judiciária dos interesses difusos, tendo-se como objectivo o aproveitamento da capacidade técnica e organizativa de um órgão do Estado, fortalecendo o controlo jurisdicional dos interesses em causa, partindo do pressuposto de que o interesse social ou supra-individual inerente ao exercício da acção popular é de algum modo comparável ao interesse geral de legalidade que o MP tem como atribuição defender [5]. A atribuição de legitimidade activa ao MP poderá gerar a necessidade de compatibilização com o regime do art. 16.º da LAP, já que frequentemente a agressão ao interesse difuso é imputável à Administração Pública, o que pode fazer com que o MP defenda, simultaneamente, os dois interesses contrapostos: intentando a acção popular (lado activo) e representando a Administração (lado passivo).


A extensão da legitimidade processual, dispensando a prova do pressuposto base da legitimidade no seio das acções singulares – o interesse directo e pessoal (art. 55.º, n.º 1, al. a) CPTA) –, visa assegurar a tutela dos interesses que não se confinam às relações individuais, e por conseguinte, à acção singular. Segundo a maioria da doutrina, a LAP visa tutelar não só os interesses difusos, mas também os interesses colectivos e os interesses individuais homogéneos [6].


Os interesses difusos e colectivos têm um denominador comum: o facto de serem interesses que não pertencem a um titular ou a um número perfeitamente determinado de titulares, mas sim, a uma colectividade mais ou menos determinada. São interesses supra-individuais e de natureza indivisível. Segundo o entendimento do Prof. Teixeira de Sousa, os interesses difusos incidem sobre bens públicos que, por natureza, só podem ser gozados numa dimensão colectiva, pertencem a uma pluralidade indiferenciada de sujeitos e recaem sobre bens indivisíveis o que implica que nenhum dos seus titulares se pode apropriar de qualquer parcela desses bens (é o caso do interesse na qualidade de vida ou na preservação do património cultural). Os interesses colectivos também são indivisíveis quanto ao objecto mas incidem sobre bens privados de uma pluralidade de sujeitos, sendo que os interesses colectivos agrupam os interesses paralelos de cada um dos titulares de bens privados, podendo ser defendidos colectivamente, mas que pressupõem uma estrutura auto-organizada (é o caso dos lesados por uma substância lesiva da saúde)[7]. Pelo contrário, para o Prof. Lebre de Freitas, a distinção não reside na natureza pública ou privada dos bens sobre os quais versam os interesses. Em palavras suas, “fala-se de interesses colectivos e de interesses difusos para qualificar interesses individuais generalizados, como tais próximos dos interesses públicos, mas de natureza ainda fundamentalmente privatística. Em causa está sempre a fruição de bens de uso pessoal não susceptíveis de apropriação exclusiva. O interesse colectivo reporta-se a uma comunidade genericamente organizada, cujos membros são como tais identificáveis, mas sem que essa organização se processe em termos de pessoa colectiva. O interesse difuso, pelo contrário, reporta-se a um grupo inorgânico de pessoas, cuja composição é, em cada momento, ocasional e por isso não permite a identificação prévia dos respectivos titulares[8].


Também não é pacífico o entendimento em torno do que seja um interesse individual homogéneo. Para o Prof. Teixeira de Sousa trata-se de uma refracção de um interesse colectivo ou de um interesse colectivo na esfera individual de cada um dos respectivos titulares. Deste modo, constituiria um interesse individual homogéneo o interesse de cada um dos habitantes de uma região na qualidade de vida ou na preservação do património cultural. Por outro lado, os lesados por uma substância lesiva da saúde sendo titulares de um interesse colectivo, seriam também titulares de um interesse individual homogéneo perspectivando o interesse de cada uma das vítimas em conjunto com o idêntico interesse de todos os outros lesados. Há doutrina, nomeadamente os Professores Ada Pellegrini Grinover, Carla Amado Gomes e António Almeida, que autonomiza substantiva e processualmente o interesse individual homogéneo relativamente ao interesse público, ao interesse colectivo e ao interesse difuso [9]. Adoptando esta concepção, os interesses individuais homogéneos dizem respeito a bens jurídicos divisíveis e em regra disponíveis, pertencentes individualmente a uma pluralidade de pessoas determinável. É particularmente na tutela deste último tipo de interesses que a LAP foi buscar a sua inspiração à class action americana, tendo por objectivo resolver o problema da representação atípica em casos de interesses individualizados pertencentes a pessoas afectadas por um risco de origem idêntica (por exemplo, a ingestão de água contaminada proveniente de um mesmo furo artesiano ou intoxicação por emissões poluentes produzidas por uma mesma fábrica) [10]. A acção de grupo tutela directamente bens pessoais (tais como a integridade física, património), já que se trata de interesses referentes a bens individualmente apropriáveis, podendo indirectamente, a sua tutela reverter a favor de toda a comunidade. Também com especial relevância para este tipo de interesses, consagra o art. 48.º do CPTA um mecanismo de agilização processual, pelo qual é possível que um grande número de processos, respeitantes à mesma relação jurídica material ou a relações materiais coexistentes em paralelo, desde que susceptíveis de ser decididos com base na aplicação das mesmas normas a idênticas situações de facto, seja reduzido a um único processo, com fundamento na “homogeneidade” dos interesses em causa.


A LAP veio também reforçar os poderes do juiz. O art. 17.º atribui ao juiz iniciativa própria em matéria da colheita de prova, sem vinculação à iniciativa das partes, delineando um novo alcance do princípio do inquisitório. Por outro lado, o art. 18.º permite a atribuição de efeito suspensivo ao recurso, ainda que a lei processual aplicável o não preveja, visando salvaguardar o efeito útil de uma decisão, prevenindo a produção de danos irreparáveis ou de difícil reparação. Se esta regra não assume grande relevância no âmbito do contencioso administrativo uma vez que a regra geral consagrada no art. 143.º, n.º 1 CPTA, é a da atribuição do efeito suspensivo ao recurso, o mesmo não é verdade em sede das acções cautelares e de intimação para a protecção de direitos, liberdades e garantias (143.º, n.º 2 CPTA) nem no âmbito da acção cível, tendo em conta a regra geral de efeito meramente devolutivo do recurso em processo civil (art. 692.º CPC). Segundo a Prof.ª Ada Pellegrini Grinover, olhando à experiência brasileira em que o juiz atendendo à natureza do bem em perigo e à gravidade da lesão iminente, tem o poder de decretar medidas inibitórias da actuação lesiva, substituindo-se ao impulso processual das partes, a solução portuguesa parece muito tímida. Contudo esta autora ressalva que a LAP confere ao juiz português “amplos poderes”, que se traduzem numa grande margem de discricionariedade devido à disciplina legislativa lacunosa, nomeadamente em sede de fixação do destino da indemnização [11].


Por último, a eficácia do caso julgado. Como regra geral, o art. 19.º atribui eficácia erga omnes à decisão judicial transitada em julgado, tanto para os casos de procedência como de improcedência. A regra geral sofre, no entanto dois limites: a eficácia será excluída em caso se improcedência do pedido por insuficiência de provas (limite objectivo); e o caso julgado, favorável ou desfavorável, não aproveita e não é oponível a quem se auto excluiu da acção (limite subjectivo). Este é mais um dos pontos de inspiração norte-americana, tendo sido acolhidos os critérios do opt out e do opt in: os titulares dos interesses em causa são citados, tendo a faculdade de se excluírem (opt out) da “representação”, devendo exercer tal faculdade de modo expresso nos autos até ao termo da fase da produção de prova ou equivalente. Não o fazendo, os interessados podem exercer o direito de intervir no processo a título principal ou nada fazerem ou dizerem, valendo a sua inércia e o seu silêncio como aceitação “da representação” (opt in) – arts. 14.º e 15.º.


São dois os principais perigos gerados por esta formulação: Em primeiro lugar, a atribuição ao silêncio do valor de aceitação, pode gerar problemas devido às formas de citação (por anúncios ou editais, sem obrigatoriedade de identificação pessoal), podendo levar a que se forme um caso julgado sem o titular do interesse ter sido adequadamente informado. Por outro lado, os Professores Lebre de Freitas e António Almeida alertam para o facto de a lei portuguesa, ao contrário das leis brasileira e norte-americana, não ter distinguido, em matéria de caso julgado, entre as diferentes categorias de interesses, sendo a situação mais chocante a dos titulares dos interesses individuais homogéneos, já que neste caso estão em causa interesses que representam verdadeiros direitos subjectivos em sentido estrito, comuns a uma titularidade indeterminada de pessoas [12]. Deste modo, defendem o Prof. Lebre de Freitas, e em termos não tão absolutos, o Prof. António Almeida, que sendo o caso julgado desfavorável, este não será oponível aos que não se tenham excluído da representação, sob pena violação do direito de acesso à justiça e aos tribunais (art. 20.º CRP), não se vedando a possibilidade dos interessados que não intervieram no processo de instaurar nova acção, uma vez que as formas de citação previstas no art. 15.º da LAP não poderão constituir presunção inilidível do conhecimento da acção por todos os interessados, nem a flutuação da titularidade do interesse difuso ou colectivo se coaduna com a ideia de perda do direito processual de o fazer valer [13].


Em relação ao regime da acção administrativa especial, verifica-se que a eficácia subjectiva do caso julgado de sentenças de provimento emanadas no âmbito da acção popular goza de um campo de produção de efeitos superior ao que resulta das sentenças emanadas no âmbito de uma acção cuja legitimidade foi aferida à luz dos critérios gerais, maxime, em virtude da titularidade de um interesse directo e pessoal, uma vez que o caso julgado apenas será inoponível a quem se exclua do processo (e quem seja excluído pelas circunstâncias acabadas de enunciar), enquanto que na acção administrativa especial, a decisão nunca poderá produzir efeitos contra terceiros que não intervieram no processo.


Para concluir queria apenas deixar mais uma nota. Se a LAP veio pôr fim a anos de inércia do legislador, concretizando legislativamente o comando constitucional, também é verdade que deixou muitas questões em aberto. Por outro lado, no tocante aos aspectos que mereceram disciplina legal, verificam-se algumas incongruências no regime, nomeadamente a articulação entre os bens jurídicos e os tipos de interesses tutelados, os critérios de representação em juízo e a eficácia do caso julgado, aspectos que mereciam adaptações de regime, mas que na legislação portuguesa são alvo de um regime único, o qual nalgumas situações se mostra desadequado e potencialmente violador dos direitos e garantias dos particulares.



Nídia Mateus








[1] A acção popular administrativa pode reconduzir-se a todas as espécies processuais que integram o contencioso administrativo e pode ser utilizada para a obtenção de qualquer das providências judiciárias legalmente admissíveis, o que decorre hoje da recepção desta forma de legitimidade especial na parte geral do CPTA, no seu art. 9.º, n.º 2, e o que já decorria, na opinião de alguma doutrina, do art. 12.º da LAP, especialmente na sua parte inicial, a qual parecia abranger para além do expressamente mencionado recurso contencioso de anulação (hoje substituído pela acção administrativa especial para impugnação de acto administrativo), os demais meios processuais administrativos. Neste sentido vide CARLOS FERNANDES CADILHA/ MÁRIO AROSO DE ALMEIDA, Comentário ao Código de Processo dos Tribunais Administrativos, 3.ª Edição, Almedina, 2010, pp. 72 - 73 e PAULO OTERO, «A Acção Popular: Configuração e Valor no Actual Direito Português», in Revista da Ordem dos Advogados, Ano 59, Vol. III, Dezembro 1999, p. 881.



[2] Seguimos a classificação bipartida da acção pública presente em PAULO OTERO, ob. cit., p. 885.



[3] Nomeadamente em sede de protecção do consumidor, no que respeita às práticas lesivas dos direitos do consumidor (art. 13.º, al. c) da Lei n.º 24/96, de 31 de Julho), e às condições gerais dos contratos ou cláusulas abusivas (art. 26.º, n.º 1, al. c) do DL n.º 446/85, de 25 de Outubro), no âmbito da defesa de bens culturais (art. 9.º, n.º 3 da Lei n.º 107/2001, de 8 de Setembro) e na salvaguarda de valores ambientais (art. 45.º, n.º 2 da Lei de Bases do Ambiente).



[4] ADA PELLEGRINI GRINOVER, «A Acção Popular Portuguesa: Uma Análise Comparativa», in Lusíada, Revista de Ciência e Cultura, I Congresso Internacional de Direito do Ambiente da Universidade Lusíada, Número especial, 1996, p. 255.



[5] CADILHA/AROSO DE ALMEIDA, ob. cit., p. 76.



[6] Neste sentido ANTÓNIO ALMEIDA, «A Acção Popular e a Lesão dos Bens Ambientais», in Lusíada, Revista de Ciência e Cultura, n.º 1 e 2, 2002, p. 373; VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 11.ª Edição, Almedina, 2011, p. 264, nota 715 e LUÍS FÁBRICA, «A Acção Popular Já não é o Que Era», in CJA, n.º 38, Mar/Abr 2003, pp. 49 e ss. Contra, defendendo que a LAP apenas tutela os interesses difusos CADILHA/AROSO DE ALMEIDA, ob. cit., p. 78.



[7] TEIXEIRA DE SOUSA, A Legitimidade Popular na Tutela dos Interesses Difusos, Lex, 2003, pp. 47 e ss.



[8] LEBRE DE FREITAS, «A Acção Popular ao Serviço do Ambiente», in Ab Uno Ad Omnes, 75 anos da Coimbra Editora, Coimbra, 1998, p. 799.



[9] ADA PELLEGRINI GRINOVER, ob. cit., p. 248; CARLA AMADO GOMES, «Não Pergunte o Que o Ambiente Pode Fazer Por Si; Pergunte-se o Que Pode Fazer Pelo Ambiente!, Reflexões breves sobre a acção pública e a acção popular na defesa do ambiente», in Textos Dispersos de Direito do Ambiente, Vol. III, AAFDL, 2010, pp. 225 e ss; ANTÓNIO ALMEIDA, ob. cit. p. 371 e ss.



[10] Nos Estados Unidos, as class action foram classificadas em true, hybrid e spurious consoante o grau da comunhão de interesses que cada uma das quais tutela, respectivamente interesses difusos, colectivos e individuais homogéneos, com diversas consequências processuais. Para mais detalhes vide ADA PELLEGRINI GRINOVER, ob. cit., pp. 248 e 249.



[11] ADA PELLEGRINI GRINOVER, ob. cit., pp. 255 – 258.



[12] LEBRE DE FREITAS, ob. cit., pp. 806 – 809 e ANTÓNIO ALMEIDA, ob. cit., pp. 377 e 378.



[13] LEBRE DE FREITAS, ob. cit., p. 807.

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