segunda-feira, 25 de abril de 2011

Impugnação de normas: breve olhar sobre a declaração de ilegalidade de normas regulamentares com força obrigatória geral.

O CPTA institui, no domínio da impugnação de normas, dois esquemas distintos de impugnação, a título principal: (i) o pedido de declaração de ilegalidade pode ser formulado pelo lesado com efeitos circunscritos ao caso concreto, correspondendo o juízo de ilegalidade a uma desaplicação da norma na situação sub judice, ou (ii) destinar-se a obter o reconhecimento judicial da ilegalidade com força obrigatória geral (arts. 72.º e 73.º CPTA) [1].

Antes da reforma existiam três modos para se reagir contenciosamente contra os regulamentos administrativos: 1) Via incidental (visava a apreciação indirecta do regulamento, configurando um incidente da questão principal); 2) Um meio processual genérico (declaração de ilegalidade de normas administrativas, era o meio adequado para reagir contra qualquer norma regulamentar, desde que, exequível por si mesma; 3) Um meio processual especial: a impugnação de normas (apresentava um âmbito de aplicação circunscrito às aos regulamentos provenientes da administração local comum).

As principais orientações do novo regime são diferentes, consistindo na uniformização do regime jurídico do contencioso regulamentar e no estabelecimento de um regime uniforme no que respeita à legitimidade.
Assim sendo, a declaração com força obrigatória geral só pode ser pedida pelos particulares interessados depois de a norma ter sido desaplicada em três casos concretos , requisito que não é exigido se o pedido for feito pelo MP. Por sua vez, a declaração de ilegalidade da norma com efeitos restritos ao caso concreto pode ser pedida pelo lesado ou pelos titulares da acção popular quando a norma produza os seus efeitos imediatamente, sem depender de um acto administrativo ou judicial de aplicação (art.73.º, n.º2).
Desta análise resulta que o CPTA assegura a protecção plena dos titulares do direitos e interesses legalmente protegidos ao nível do caso concreto, mas olha para a questão da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral como uma questão predominantemente de interesse público.

Importa agora atender aos efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral (art.76.º do CPTA). Os efeitos da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral produzem-se, em regra, ex tunc, determinando a repristinação das normas revogadas.
O preceito estabelece para o âmbito da eficácia da declaração de ilegalidade com força obrigatória geral um regime similar ao previsto no art.282.º da CRP. Do regime exposto no art.76.º podemos afirmar que:
a) A retroactividade de efeitos não afecta as situações de “caso julgado” e os “actos administrativos que entretanto se tornaram impugnáveis” (situações jurídicas consolidadas por falta de impugnação contenciosa de acto administrativo constitutivo de direitos), salvo decisão em contrário do tribunal em matéria sancionatória, quando tal seja mais favorável ao particular. Esta solução beneficia os particulares lesados, que conseguem obter a eliminação dos efeitos não consolidados das normas.
b) Os casos julgados e os actos administrativos consolidados cedem perante o principio da aplicação retroactiva da norma sancionatória mais favorável (art.76.º, n.º3);
c) O tribunal pode afastar o regime da retroactividade, fazendo reportar os efeitos da declaração de ilegalidade à data do trânsito em julgado (art.º76, n.º2). Neste ponto levanta-se a questão de saber se caso o tribunal não tenha usado esta faculdade, o interessado pode recorrer ao expediente de apreciação incidental da ilegalidade de acto administrativo (art.38.º do CPTA)? Seguindo a posição do Prof. Mário Aroso de Almeida [2], nada obsta a a que o interessado se socorra deste meio, uma vez que “a relação jurídica entre as partes não se encontra ainda fixada, pelo que nada impede que o acto administrativo, ainda que inimpugnável possa ser analisado à luz das normas repristinatórias”. A apreciação incidental da ilegalidade no âmbito de uma acção administrativa comum, nos termos do art.38.º, visa obter efeitos jurídicos que não coincidam com os que resultariam da anulação do acto administrativo. Importa, ainda, ressalvar que o disposto neste artigo (76/2) não impede que os interessados impugnem os eventuais actos administrativos que tenham sido anteriormente praticados ao abrigo da norma, ou seja, a declaração de ilegalidade com força obrigatória geral, come feitos ex nunc significa que a norma é eliminada da ordem jurídica para o futuro, o que não afasta a possibilidade de vir a ser desaplicada, a titulo incidental, no âmbito de um processo de impugnação de um acto administrativo de aplicação.

Quanto aos efeitos da declaração de ilegalidade no caso concreto, a lei nada refere, devendo entender-se que operam ex tunc e igualmente com efeito repristinatório, embora se produzam apenas naquele caso. Sendo que, neste caso, não se justifica a aplicação da regra do art.76/2, uma vez que os “fundamentos legais dessa limitação respeitam exclusivamente aos efeitos gerais da declaração da ilegalidade- o que torna esta via mais favorável ainda para o requerente” [3].
Questão importante neste contexto, será saber se a Administração poderá reeditar a norma declarada ilegal com força obrigatória geral? Parece ser de admitir que a administração possa reproduzir a norma, sem prejuízo de poder haver uma nova fiscalização da sua legalidade [4], desde que sejam sempre respeitados os princípios constitucionais da segurança e da certeza jurídica, nos termos gerais. Podendo ainda a administração conceder eficácia retroactiva à nova norma, não vendo, assim, limitada a sua liberdade de fixação do âmbito temporal de aplicação.
Esta posição será a mais acertada, uma vez que será sempre de admitir um novo juízo sobre a norma reeditada, por outro lado, impedir esta orientação traduziria um poder absoluto concedido ao tribunal, assumindo a sua declaração carácter incontestável, seria admitir a infalibilidade das decisões.

Em suma: vigora no nosso contencioso administrativo uma ideia de democracia que reconhece que não vigoram decisões irreversíveis, temos que estar sempre aptos a alterações benéficas, ou seja, vivemos sob o olhar de um regime buliçoso, sempre disposto a rectificações. Sendo de admitir, por isso, a possibilidade de reprodução da norma ilegal e de fixação do respectivo âmbito de eficácia, desde que respeitados os princípios constitucionais da segurança e certeza jurídica.


Estela Guerra, n.º17269



[1]Cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Esteves Cadilha, in Comentário ao Código de Processo nos Tribunais Administrativo, Almedina, 3.ª edição, 2010, pp.480.
[2]Cfr. Vasco Pereira da Silva, O Contencioso no Divã da Psicanálise, ensaio sobre as acções no novo processo administrativo, 2.ª edição, Almedina, 2009, pp.415.
[3] Para Mário Aroso de Almeida “ o interessado lesado por uma norma directamente aplicável, mas julgada ilegal em três casos concretos, não está porém, obrigado a pedir a declaração de ilegalidade dessa norma com força obrigatória geral. Ele pode limitar-se a pedir que a declaração seja proferida com efeitos circunscritos ao seu caso, evitando, o risco de se poder ver confrontado com uma eventual decisão do tribunal de limitação dos efeitos da sua pronúncia no exercício do poder que lhe é conferido pelo art. 76.º, n.º2”. In: Mário Aroso de Almeida, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010, pp.335-336.
[4]Cfr. Mário Aroso de Almeida e Carlos Esteves Cadilha, op. Cit., pp.500.
[5]Cfr. Vieira de Andrade, A Justiça Administrativa, 11.ª ed., Coimbra, 2011, pp. 216.
[6]Cfr. Paulo Otero, Ensaio sobre o caso julgado inconstitucional, Lisboa, 1993, pp. 140 e ss.

Sem comentários:

Enviar um comentário