sábado, 9 de abril de 2011

Interesse em Agir na Acção Administrativa Especial?


O “interesse em agir” ou “interesse processual” é tradicionalmente definido como o “interesse da parte activa em obter a tutela judicial de um direito subjectivo através de um determinado meio processual[1], ou ainda, como a “necessidade de usar do processo, de instaurar ou fazer prosseguir a acção[2]. Este pressuposto processual visa essencialmente definir as condições nas quais uma parte pode recorrer aos tribunais quando o direito por ela alegado não lhe atribui por si só a faculdade de requerer a tutela judicial[3]. Deste modo, o autor tem interesse em agir quando a sua situação jurídica careça de tutela judiciária.


O interesse processual distingue-se dos restantes pressupostos processuais relativos às partes, pois estes referem-se às qualidades ou atributos dos litigantes, enquanto o interesse processual se reporta à situação objectiva de carência em que ele se encontra. Por outro lado, distingue-se também da legitimidade porque esta se refere ao objecto da lide, ao conteúdo material da pretensão, determinando qual o sujeito que pode ser parte activa ou passiva numa acção, enquanto o interesse em agir respeita ao interesse no próprio processo, no recurso à via judicial, na inevitabilidade do pedido de tutela jurisdicional apresentado em juízo[4], ou seja, determina as condições em que a parte pode recorrer aos tribunais. No entanto, mantém-se uma certa relação entre a legitimidade e o interesse, porque só a parte legitimada pode ter interesse processual. Por outras palavras, o interesse processual é aferido relativamente à parte à qual é concedida a faculdade de intentar ou contestar uma determinada acção, isto é, à parte com legitimidade activa ou passiva para essa acção.



No âmbito do contencioso administrativo, o princípio geral relativo à legitimidade encontra-se no art.º 9.º, n.º 1 do CPTA onde se lê que “sem prejuízo do disposto no número seguinte e do que no art.º 40.º e no âmbito da acção administrativa especial se estabelece neste código, o autor é considerado parte legítima quando alegue ser parte na relação material controvertida”. Deste modo, por princípio, só se poderá apresentar a litigar em juízo quem alegue ser titular da relação jurídica administrativa donde emerge o conflito. Deste modo, no âmbito da acção administrativa comum, o interesse processual complementa a legitimidade activa, na medida em que não basta a titularidade da posição jurídica substantiva para justificar o recurso aos tribunais a fim de obter a sua apreciação, exigindo-se uma necessidade de tutela judicial, a qual se encontra justificada, numa acção destinada ao reconhecimento de uma situação jurídica subjectiva ou de uma qualidade, pela existência de uma situação de incerteza objectiva e grave, que resulte de um facto exterior e que seja capaz de trazer um sério prejuízo ao demandante; de uma ameaça ou de um fundado receio de que a Administração adopte uma conduta ilegal lesiva, impedindo o demandante de retirar do seu direito a plenitude das vantagens a ele inerentes[5]. Estas situações têm hoje previsão expressa no art. 39.º do CPTA.



A regra geral de legitimidade sofre adaptação quando está em causa a propositura de uma acção administrativa especial já que, neste caso, a legitimidade activa não depende da titularidade da referida relação visto a lei se limitar a exigir que o autor alegue “ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos” (art.º 55.º, n.º 1, al. a) do CPTA), o que alarga a possibilidade daquele que não é titular da relação material controvertida poder propor uma acção deste tipo, para tanto bastando alegar que é titular de um interesse directo e pessoal e que este foi lesado, ainda que reflexamente, por aquela relação.


Enquanto o Prof. Mário Aroso de Almeida, assim como a maioria da doutrina, faz coincidir o interesse em agir com o interesse directo exigido enquanto condição de legitimidade, o Prof. Vieira de Andrade defende a autonomização do interesse em agir “sempre que a admissibilidade da iniciativa processual do autor tenha de, por força da lei, ser concretamente aferida por um interesse que complemente a titularidade de uma posição jurídica substantiva ou o critério legal substitutivo de atribuição de legitimidade[6], mesmo em sede de acção administrativa especial.


Deste modo, numa acção de impugnação de um acto administrativo, não bastaria que o autor tivesse um interesse pessoal e directo no resultado, impondo-se ainda a actualidade e a probabilidade (por oposição a uma mera eventualidade) do interesse na anulação do acto, as quais se traduziriam, por exemplo, em vedar a tutela judiciária nos casos em que o particular não retiraria nenhuma vantagem do provimento do pedido, ou em admitir apenas a impugnação de actos administrativos ineficazes quando seja seguro ou muito provável que o acto irá produzir efeitos.


Por sua vez, o Prof. Vasco Pereira da Silva reconduz a aceitação do acto administrativo à falta de interesse em agir na acção de impugnação desse acto administrativo (art. 56.º CPTA). Assim, segundo este Professor, nos casos em que existe uma declaração expressa de aceitação do acto administrativo (art. 56.º, n.º 1), ou essa aceitação esteja implícita “na prática, espontânea e sem reserva, de facto incompatível com a vontade de impugnar” (art. 56.º, n.º 2), o particular perde o interesse na impugnação do acto administrativo, podendo o particular, contudo, revogar tal declaração ou alterar o referido comportamento[7].



Coloca-se, então a questão: Justifica-se a autonomização do interesse em agir na acção administrativa especial?


O interesse directo, exigido no art. 55.º, n.º 1, al. a) CPTA enquanto pressuposto de legitimidade, traduz-se na existência de um interesse actual e efectivo em pedir a anulação ou a declaração de nulidade do acto que é impugnado. Sendo o impugnante o titular do interesse, dele retirando uma utilidade para si próprio, ou seja, cujos efeitos da decisão se repercutem maioritária ou exclusivamente na sua esfera jurídica (interesse pessoal), o interesse directo afere da existência de uma situação efectiva de lesão que justifique a utilização do meio impugnatório. Neste sentido, terá legitimidade para impugnar um acto “quem espera obter da anulação do acto impugnado um certo benefício e se encontra em condições de o poder receber[8], verificando-se o interesse directo quando o efeito da anulação se repercuta imediatamente na esfera do interessado, ao qual se contrapõe um interesse longínquo, eventual ou hipotético, que não se dirija a uma utilidade que possa advir directamente da anulação do acto impugnado. Por outras palavras, tem de existir uma ligação directa necessária entre o pedido e os efeitos da decisão. Este tem sido o entendimento da doutrina maioritária e da jurisprudência. A título de exemplo, no acórdão do STA de 29.10.2009 (Proc. 01054/08) pode ler-se: “A indispensável e efectiva ligação entre o autor e o interesse cuja protecção reclama só garante a sua legitimidade quando, por um lado, ocorre uma situação de efectiva de lesão que se repercute na sua esfera jurídica, causando-lhe directa e imediatamente prejuízos, e, por outro, quando daí decorre uma real necessidade de tutela judicial que justifique a utilização do meio impugnatório, isto é, quando o interesse para que reclama protecção é directo e pessoal”.



Deste modo, no meu entender, a exigência de que o interesse seja directo (interesse actual, efectivo e de repercussão imediata) consome a exigência da “actualidade e probabilidade” dos efeitos pretendidos com a anulação do acto, referidas pelo Prof. Vieira de Andrade. Na verdade, como aponta o Prof. M. Aroso de Almeida, apenas o carácter “pessoal” do interesse se refere ao pressuposto processual da legitimidade, traduzindo-se o carácter “directo” na necessidade de tutela judiciária ou interesse em agir. Deste modo, na acção administrativa especial, mais concretamente, na acção de impugnação de acto administrativo, não se justifica a exigência de interesse em agir enquanto pressuposto processual autónomo.



Nídia Mateus








[1] MIGUEL TEIXEIRA DE SOUSA, O interesse processual na acção declarativa, AAFDL, 1989, p. 5.


[2] ANTUNES VARELA, J. MIGUEL BEZERRA, SAMPAIO E NORA, Manual de Processo Civil, 2ª ed. revista e actualizada, Coimbra Ed., 1985, p. 179.


[3] A este propósito distingue o Prof. Teixeira de Sousa entre a função positiva e negativa do interesse processual. A primeira permite que o interesse processual conceda à parte a faculdade de requerer uma determinada tutela judicial numa situação em que a mera alegação do direito subjectivo não o permita. (É por esta função que se define a necessidade de tutela judicial). Já quando o interesse processual retira ao titular de um direito subjectivo a faculdade de requerer uma certa tutela judicial, esse interesse mostra-se na sua função negativa. É esta a função que determina a adequação do meio processual utilizado pelo autor.


[4] ANTUNES VARELA,…, ob. cit. p. 181.


[5] VIEIRA DE ANDRADE, A Justiça Administrativa, 11.ª edição, Almedina, 2011, p. 268.


[6] Idem, p. 269.


[7] VASCO PEREIRA DA SILVA, O Contencioso Administrativo no Divã da Psicanálise, 2.ª edição, Almedina, 2009, p. 374. Pelo contrário, considerando que se trata de um pressuposto processual autónomo vide VIEIRA DE ANDRADE, «A Aceitação do Acto Administrativo», in Boletim da Faculdade de Direito – Volume Comemorativo, Universidade de Coimbra, 2003, pp. 907 e ss e M. AROSO DE ALMEIDA/CARLOS CADILHA, Código de Processo nos Tribunais Administrativos Anotado, 3.ª edição, 2010, p. 381.


[8] M. AROSO DE ALMEIDA, Manual de Processo Administrativo, Almedina, 2010, p. 235.

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