sexta-feira, 15 de abril de 2011

A legitimidade dos contra-interessados nas acções administrativas comuns e especiais

A questão dos contra-interessados no processo administrativo tem sido analisada à luz do princípio do contraditório e como forma de garantir a eficácia subjectiva do julgado evitando situações justificativas do recurso extraordinário de oposição de terceiro. A dificuldade reside em encontrar uma justificação para a posição processual de terceiro que não se circunscreva à discricionariedade ou sensibilidade do juiz que entende dever dar um papel no processo àqueles que possam ser prejudicados pela impugnação do acto. A regulamentação normativa do procedimento administrativo, em particular, o reconhecimento do direito à participação dos interessados, arts 52º e 53º CPA, veio fornecer às partes e ao juiz indicações preciosas, pois que em princípio os interessados no procedimento tal como o autor, têm um direito ou interesse legalmente protegido a defender no processo contencioso. O CPTA depois de afirmar o principio da tutela jurisdicional efectiva, art 2º nºs 1 e 3, em termos similares ao do Código de Processo Civil, art 2º nº2, regula a legitimidade das partes, no Título I, Parte Geral, Capítulo II. Diz-se no art 9º daquele diploma, que o autor é parte legítima “quando alegue ser parte na relação material controvertida”, embora desde logo se ressalvem as situações onde se façam valer interesses difusos e as acções públicas, bem como as acções administrativas especiais. No artigo seguinte, art 10º disciplina-se a legitimidade passiva, onde a última parte do seu nº1 se reporta precisamente à posição dos contra-interessados. O nº 3 do art 26º do CPC exprime, por outras palavras, a mesma ideia referida no art.9º nº1 do CPTA: o critério operacional para reconhecer a legitimidade das partes é o da titularidade da relação material controvertida tal como é apresentada pelo autor, a qual se analisa entre duas posições subjectivas contrapostas. No direito administrativo, por detrás de cada uma delas, sejam de interesse subjectivo ou de interesse legalmente protegido, encontra-se o interesse de facto do seu titular como o explica claramente o CPC e o indica também a parte inicial do nº2 do art 9º do CPTA, ao referir “independentemente de ter interesse pessoal na demanda, qualquer pessoa..”. A relação material controvertida entre o autor e o contra-interessado trata-se de uma relação horizontal que não consubstancia uma relação concreta, equivalente às relações verticais entre particulares e autoridade administrativa que se desenvolvem no tráfico jurídico, mas antes o juízo comparativo de valoração realizado no plano normativo. Do lado passivo, as partes no processo, autoridade administrativa e contra-interessado, encontram-se numa situação de litisconsórcio necessário justamente em virtude da existência do programa da norma que “une” as posições materiais de autor e de réu. O CPTA separa a participação dos contra-interessados como parte principal da intervenção de terceiros, art 10º nº8 , regulada nos arts 320º e ss do CPC e aplicável subsidiariamente no Contencioso Administrativo. Uma coisa são os contra-interessados, outra, bem diferente, os restantes terceiros. No âmbito da acção administrativa especial existem três regulamentações distintas da legitimidade activa e passiva, uma por cada um dos seus sub-tipos: impugnação de actos administrativos – CPTA,arts 55º e 57º; condenação à prática do acto devido – CPTA, art 68º nºs 1 e 2; impugnação de normas e declaração de ilegalidade por omissão – CPTA, art 73º, mas esta apenas quanto à legitimidade activa. A “summa divisio” entre a acção administrativa comum e as especiais é feita pelo CPTA com base no objecto do processo: seguem a forma das acções administrativas especiais “os processos cujo objecto sejam pretensões emergentes da prática ou omissão ilegal de actos administrativos, bem como de normas que tenham ou devessem ter sido emitidas ao abrigo de disposições de direito administrativo” – CPTA, art 46º nº1; os restantes processos declarativos revestem a forma de acção administrativa comum – CPTA, art 37º nº1. A acção administrativa comum aplica-se ainda aos processos de declaração da existência de um acto administrativo, mas não aos processos onde seja reconhecida directamente a sua nulidade ou inexistência jurídica, e às acções negatórias que pretendam prevenir a emissão de um acto administrativo lesivo – CPTA, arts 37º nº2 al. c) e 42º nº2 al. a). Para impugnar um acto administrativo tem legitimidade “quem alegue ser titular de um interesse directo e pessoal, designadamente por ter sido lesado pelo acto nos seus direitos ou interesses legalmente protegidos – CPTA art. 55º nº1 al. a). Nas condenações à prática de acto devido, o critério da legitimidade como alegação da titularidade de um direito ou interesse legalmente protegido dirigido à emissão de um acto – CPTA, art 68º nº1 a), não é diferente da definição da legitimidade como titularidade de uma posição na relação jurídica controvertida. Esta é, precisamente, a posição do particular na relação vertical face à autoridade administrativa, e também na relação horizontal quando a norma se refere aos interesses do autor e do seu opositor. Podem-se então, colocar dois problemas a respeito das normas que regulam a legitimidade activa e passiva nas acções administrativas especiais de impugnação de actos devidos e de condenação à prática de acto devido, os quais se encontram interligados, e são: primeiro, como devem definir-se os conceitos de legitimidade fixados nos arts 55º nº1 al. a) e 57º CPTA como pressupostos da acção de impugnação, e no art. 68º do CPTA nos seus nºs 1 al. a) e 2 para as acções de condenação à prática do acto devido, e em que medida se diferenciam do conceito definido no capítulo II da Parte Geral do mesmo Código? Segundo, que relações existem entre os conceitos de legitimidade nas acções administrativas especiais e o consagrado para a acção administrativa comum? Para responder à primeira questão comecemos pela acção de condenação à prática do acto devido. O legislador quanto aos arts 66º nº2, 51º nº4, 68º nº1 e 2 todos do CPTA pretendeu que se reconhecesse com clareza que a pretensão processual à emissão do acto resulta de um direito relativo, de um direito inscrito numa relação de tipo obrigacional em que o lado activo é ocupado pelo particular e o lado passivo pela autoridade administrativa, direito que pode ser mais ou menos preciso consoante o grau de vinculação da Administração. Se no lado passivo estivermos perante uma situação de discricionariedade, poderemos dizer que lhe corresponde do lado activo um interesse legalmente protegido ou um interesse legítimo, as quais são sinónimas. Do lado do contra-interessado haverá também um direito ou interesse legalmente protegido em exigir uma abstenção, a não prática do acto. A relação horizontal entre os dois particulares é puramente normativa e constitui a razão de ser da protecção jurídica da posição substantiva do terceiro e da sua possibilidade de tutela jurisdicional como contra-interessado, ou até como autor dada a reversibilidade ou homogeneidade de situações existentes. Então, é a titularidade do poder de exigir a prática de um acto que constitui o essencial da legitimidade activa; é igualmente o poder de exigir a abstenção da prática do acto requerido que concede a legitimidade passiva. O direito ou interesse legalmente protegido trata-se de uma relação jurídica que está em litígio. Essa relação concreta subdivide-se em dois segmentos verticais, designadamente, a relação entre o autor e a autoridade administrativa e a relação entre o contra-interessado e a autoridade administrativa, a qual decorre da relação horizontal substantiva existente entre os particulares em juízo. O critério da legitimidade activa e passiva da acção administrativa especial de condenação à prática de acto devido coincide, então, quanto à titularidade da situação subjectiva, com o utilizado pelo legislador na acção administrativa comum. A menção a documentos para a identificação dos contra-interessados no art. 68º nº2 do CPTA, é apenas um modo prático de determinar os sujeitos da relação material controvertida, pois obviamente não é suficiente constar do processo a identificação de outros interessados para que estes sejam qualificados como partes principais. A relação material controvertida presente neste normativo, que diz respeito ao autor e contra-interessado, trata-se de uma relação horizontal constante na norma. Não se devendo esquecer que nas acções especiais de condenação pode nem haver procedimento administrativo ou acto expresso de recusa. Nestas mesmas acções especiais regista-se ainda uma particularidade quanto ao tipo de relações horizontais em que existe reversibilidade, o que confirma a coincidência de critérios que definem o pressuposto da legitimidade na acção administrativa comum e naquele tipo de acções especiais. Exemplificando: se A pretende abrir uma farmácia e B se lhe opõe por ser titular de uma outra situada dentro do raio de distância de protecção, e a pretensão é denegada, A é o autor do pedido de condenação e B o contra-interessado, mas, se B conhecedor do projecto de A abrir a farmácia, quer defender-se por antecipação, deverá propor acção negatória ao abrigo dos arts 2º al c), e 37º nº2 al c) do CPTA, assumindo A a posição de réu contra-interessado. A relação horizontal é a mesma, mas trocam-se as situações processuais, sendo a legitimidade definida pelos mesmos parâmetros processuais num e noutro tipo de acção. O legislador neste tipo de acção cautelar negativa, por entender que falta a prática de um acto que fixasse o objecto do processo levou a que considerasse essa acção como comum, fazendo uma excepção ao critério de separação que divide as acções administrativas comuns e especiais. Pode-se então concluir que, não existem diferenças entre os conceitos de legitimidade activa e passiva exigidos para as acções administrativas comuns e para as acções de condenação à prática do acto devido. Não existindo também neste tipo de acções de condenação, interesses meramente de facto que autorizem os particulares a agir, quer como autores, quer como contra-interessados. Agora, quanto às acções de impugnação de actos administrativos, a reversibilidade de posições, a homogeneidade, das relações horizontais também autorizam a intermutabilidade de papeis processuais consoante a iniciativa da propositura da acção for tomada por quem tem interesse na mutação ou por quem defende o “status quo”. Quem impugna um acto administrativo cita como contra-interessados os que na relação horizontal pretendam que o acto se mantenha, mas também pode acontecer, que estes se adiantem e pretendam, em acção de condenação prevista nos arts 2º nº2 al. c) e 37º nº2 al. c) do CPTA, que a autoridade administrativa se abstenha de revogar o acto praticado. O art. 57º do CPTA caracteriza os contra-interessados nos processos de impugnação exactamente nos mesmos termos em que o faz o art. 68º nº2 CPTA. Em ambos os preceitos, a relação material entre o autor e o contra-interessado tem de ser entendida como a relação horizontal constante do programa da norma que se aplicar na resolução do litígio. Este conceito de relação material é também usado no âmbito das acções especiais de impugnação quanto à cumulação de pedidos, arts 4º nº 1 al. a) e 47º nº1 CPTA, e nos processos em massa, art 48º nº1 CPTA. Do exposto pode-se inferir que, também nas acções de impugnação de actos administrativos a legitimidade activa e passiva dos particulares é avaliada nos mesmos termos das acções administrativas comuns, termos que não são diversos do conceito de legitimidade presente no art. 26º CPC. No contencioso administrativo, a relação material pode significar duas entidades distintas: a relação horizontal entre quem pretende a alteração do “status quo”, seja através da acção constitutiva, seja através da acção de condenação, e quem luta pela sua manutenção; e as relações concretas entre os particulares e a autoridade administrativa, autora do acto ou da omissão. A relação horizontal constante do programa da norma constitui, contudo, o elemento fundamental para a determinação de quem é parte legítima como autor ou contra-interessado nas acções propostas por particulares. Outro problema que se coloca é o de se apurar se, para além da legitimidade derivada da alegada titularidade de sujeitos da relação controvertida, existem outras situações de legitimidade. Portanto, se existe a possibilidade do interesse directo e pessoal do particular poder incluir a defesa de interesses de facto como parece inculcar o art. 55º nº1 al. c) do CPTA ao acrescentar in fine a expressão “designadamente por ter sido lesado no seu direito ou interesse legalmente protegido". O levaria a admitir haver interesses de facto, isto é, não legalmente protegidos por norma substantiva, ou só ocasionalmente protegidos. Depois da publicação do CPTA defende-se que a legitimidade dos particulares, tanto nas acções administrativas especiais de impugnação de actos como nas acções de condenação à prática de acto devido, se determinam como nas acções administrativas comuns, não sendo admitida a invocação de interesses de facto. O interesse pessoal é sempre uma situação jurídica não sendo suficiente a alegação de vantagens meramente económicas ou outras. Tal decorre do princípio da tutela jurisdicional efectiva consagrado na Constituição, art. 268º nº4, e no CPTA, art. 2º nº1 e que, para além de ser um princípio geral é também um direito fundamental dos particulares. Os tribunais que administram a justiça em nome do povo dirimem litígios emergentes das relações administrativas e também fiscais, assim permitindo realizar o direito fundamental dos particulares à tutela jurisdicional efectiva. A lei ordinária pode ainda estender a sua competência, atribuindo-lhe poder para julgar acções populares e a acção pública, tal acréscimo de competência é constitucionalmente garantida, que terá de ser objecto de norma expressa do legislador ordinário. A relação horizontal dada pelo programa da norma permite a subjectivação da sua regulamentação nas posições dos particulares primeiros e terceiros, o que de outra maneira, seria dependente da discricionariedade do legislador. O conceito de relação jurídica horizontal permite então, diminuir a discricionariedade do julgador em determinar quem pode estar em juízo. Aquele, indica também com precisão os limites subjectivos do caso julgado das sentenças administrativas, bem como as condições da sua execução, pois a reconstituição das situações hipotéticas é fixada pelo programa da norma ou normas que foram aplicadas na sentença. O processo executivo, orientado pelo princípio da realização coerciva da tutela anteriormente declarada, não pode realizar o mero interesse de facto. Concluindo, as relações existentes entre a disciplina da legitimidade na parte geral do Código e a das acções administrativas de impugnação e de condenação à prática de acto devido, são relações de coincidência divergindo, apenas, no caso das acções de impugnação, no modo da sua expressão ainda influenciado pelo normativo que anteriormente vigorava para o recurso directo de anulação. Ambos os conceitos partem do programa da norma aplicável para identificar a relação horizontal entre os particulares, admitindo, depois, que as relações verticais entre cada um dos sujeitos de relação horizontal e a autoridade administrativa permitam formular, as pretensões concretas sempre dirigidas a uma conduta positiva ou a uma omissão daquela autoridade. Quando a relação horizontal não existir, a relação jurídica controvertida consubstancia-se apenas entre o autor do acto e a autoridade administrativa, não havendo neste caso, contra-interessados. São, todavia, situações cada vez mais raras devido à progressiva subjectivização da norma administrativa.

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